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Olga Mariano

“Eu posso ser tudo o que eu quiser ser, sem nunca deixar de ser quem sou”

Olga Mariano foi a primeira mulher portuguesa cigana a trilhar os caminhos do associativismo na sua comunidade, com a Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas. Hoje, com 73 anos, continua a lutar pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres, pela importância da instrução escolar. Mas sem nunca deixar de lado as suas raízes.

À margem com…
Olga Mariano
A primeira mulher portuguesa cigana a trilhar os caminhos do associativismo na sua comunidade, com a Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas.
Entrevista:

FOI EM 2000 QUE CRIOU A AMUCIP E FOI A PRIMEIRA MULHER A CRIAR UMA ASSOCIAÇÃO PARA A COMUNIDADE CIGANA EM PORTUGAL. COMO É QUE FOI ESSE PROCESSO E PORQUE É QUE SENTIU ESSA NECESSIDADE? E, PRINCIPALMENTE, O QUE É QUE ISSO REPRESENTOU PARA SI, MAS TAMBÉM PARA AS OUTRAS MULHERES DA COMUNIDADE CIGANA? 

Tudo tem uma história. Isto deu-se no início de 1998, numa ação de formação de mediadoras socioculturais. Fiz parte desse grupo de formandas, com mais cinco mulheres ciganas, e houve um dos nossos formadores que nos motivou a formarmos a associação. Nunca tínhamos ouvido falar em tal coisa, não sabíamos o que era, o que é que era preciso, para que é que servia… Mas achámos que era um desafio e aceitámos, apesar de termos entrado completamente às cegas,
porque somos pessoas empreendedoras, ativistas. E em 2000 criámos então a associação com o nome AMUCIP, que quer dizer Associação das Mulheres Ciganas Portuguesas. Eu, como sócia fundadora e presidente da associação durante 13 anos, fui a primeira mulher cigana nestas andanças associativas.
Para nós, foi um desafio imenso porque aprendemos muitas coisas. Durante os primeiros cinco anos andámos um bocadinho à toa.

TINHAM ALGUÉM QUE VOS FOSSE AJUDANDO, COMO UM MENTOR?

Não. A única pessoa que nos motivou foi aquele formador, até ao final do curso. Fomos conhecendo pessoas interessantes pelo caminho e a Câmara do Seixal, na altura, tinha uma vereadora, a dra. Corália Loureiro, que era uma pessoa que gostava, e ainda gosta, do povo cigano. Ela era uma pessoa muito ativa na altura e teve conhecimento da nossa associação. Sempre nos motivou, que a associação era muito importante, que fazia diferença por ser a primeira associação de mulheres ciganas no país. Este apoio foi muito importante, e fomos trilhando o nosso caminho, encontrando pessoas que nos apadrinharam.

Fomos tendo alguma dificuldade porque não sabíamos para que é que aquilo servia. E fomos aprendendo, aprendendo, aprendendo. Durante cinco anos não tínhamos onde nos reunir senão na casa de cada uma, num café, e o nosso carro particular é que era o nosso escritório. Mas o mais importante é que cada uma de nós achava importante participar em colóquios, participar em reuniões, aceitar convites, quer fosse a nível nacional, quer fosse a nível europeu… Até que um dia, também por motivos ocasionais, conhecemos duas pessoas importantes, a dra. Margarida Marques e a dra. Maria do Céu da Cunha Rêgo. E então acharam que era importante estas mulheres ciganas, que tinham constituído uma associação há já cinco anos, que fossem parceiras num projeto que todas nós fabricámos. E convidámos outra associação, o CESIS [Centro de Estudos para a Intervenção Social], para, em conjunto, fazermos um projeto que se chamava “Pelo sonho é que vamos” e candidatámo-nos, na altura, a um programa EQUAL.

Mas como não tínhamos sede, a dra. Maria do Céu achou importante, enquanto a candidatura era aceite ou não, dar os parabéns à Câmara do Seixal pela cedência de uma sede, sede essa que ainda não existia. Mas em boa hora, ao dar os parabéns por uma coisa que não existia, o fez porque ao fim de pouco tempo já tínhamos uma sede. Então, o “Pelo sonho é que vamos” foi todo ele trabalhado nessa sede, com os parceiros, que ficava no bairro da Cucena, em Paio Pires. Era um bairro maioritariamente de comunidade cigana, mas não era esse o nosso objetivo, trabalhar apenas com a comunidade cigana. Tínhamos uma porta aberta para o bairro e só aceitávamos meninos, ciganos ou não, que de manhã andassem na escola e ficassem connosco da parte da tarde. Os que andassem da parte da tarde na escola, aceitávamo-los da parte da manhã. Portanto, a moeda de troca era eles andarem na escola. E foi um projeto lindíssimo, maravilhoso, que foi a rampa de lançamento para a AMUCIP. Foi o primeiro projeto, um projeto a nível europeu, com dois parceiros grandes, e que nos deu oportunidade de irmos a Itália ver como funcionavam lá as associações ciganas. Estivemos em Bolzano, no norte de Itália, onde vimos acampamentos ciganos, quer acampamentos pré-fabricados, quer acampamentos de pano ou de roulottes. E tirámos boas experiências aí, enquanto mulheres pertencentes a uma associação, e trouxemos muitos conhecimentos, principalmente ao nível da gastronomia, de como é que funcionava lá o associativismo. E constatámos que ainda
estávamos um bocadinho melhor que eles, que eramos mais bem aceites em Portugal do que eles na Itália.

Depois, o próprio curso de mediadores socioculturais que nós tivemos deu-nos a oportunidade de estagiarmos em escolas no nosso concelho. Íamos juntando ferramentas para mais tarde as podermos utilizar.

IAM TAMBÉM COLHENDO EXPERIÊNCIAS A OUTROS SÍTIOS E OUTRAS REALIDADES…

Exatamente. Mas não se pense que foi muito fácil. Mesmo na comunidade da qual fazemos parte, houve muita censura.

COMO É QUE FOI RECEBIDO PELA COMUNIDADE, TANTO HOMENS COMO MULHERES?

Houve muita censura, e de parte a parte. Durante os estágios, por exemplo, estávamos nas escolas, éramos cinco mediadoras repartidas por três escolas, três contextos diferentes em termos escolares e de espaço físico. Havia uma escola mais da comunidade dita normal e as outras duas ficavam num bairro social. Mas foram experiências que ganhámos para a vida. Os ciganos costumavam dizer que “aquelas mulheres, se estivessem em casa não estavam melhor ? A lavar a loicinha, a varrer a casa… O que é que elas estão aqui a fazer?” E os não ciganos, principalmente as contínuas das escolas, “não pensem elas que vêm para aqui roubar o nosso trabalho, o nosso emprego”. Portanto, de parte a parte levámos muita tareia, mas somos muito resilientes, e sabíamos que era aquilo que queríamos para nós.

Então continuámos, cada vez a fazer mais projetos, tivemos um projeto muito interessante, que se chamava “AMUCIP sobre
rodas”, e que trabalhámos na instituição prisional de Tires, com as mulheres detidas. Demos formação sobre a cultura cigana às guardas e aos outros técnicos que trabalhavam com estas mulheres, conseguimos fazer ver àquelas mulheres que se tirassem um curso profissional poderiam eventualmente mudar um pouco a forma como elas viam a vida. Esse projeto foi muito interessante.

E ATUALMENTE O QUE É QUE A AMUCIP FAZ?

A AMUCIP continua a trabalhar. Agora tem uma baita de uma sede dentro da malha urbana… Há outros corpos dirigentes, depois de mim já houve mais duas presidentes, embora eu continue a fazer parte da AMUCIP. E o que é que eu, Olga Mariano, achei que era importante? Procurar outros elementos, principalmente a nível
geográfico. Ou seja, fizemos um caminho no Seixal, durante 13 anos, então agora vou partir para outra. Vou desbaratar. Então, eu e o Bruno [Gonçalves] achámos que seria interessante uma associação mista e assim surgiu a Letras Nómadas, em 2013, que, tal como a AMUCIP, tem dado que falar pelos seus projetos.

A AMUCIP fez ene mulheres conseguirem vencer os medos da escola. Umas, que não sabiam ler nem escrever, ficaram com o 4º ano. Outras, que já sabiam ler e escrever, ficaram com o 9º. E algumas estão a alcançar o 12º. A AMUCIP está encaminhada, não precisa da Olga para nada.

A Letras Nómadas foi uma nova aventura, aventura que passou as fronteiras ao lançarmos redes a nível europeu. Tivemos um convite para nos formarmos como formadores a nível europeu e estivemos a tirar essa ação de formação em Estrasburgo. Conhecemos ciganos europeus que nem fazíamos ideia de que existissem e que vimos que a cultura cigana está enraizada em todas as partes do mundo e que continua a ser o mesmo tipo de cultura em Portugal, em Espanha, na Alemanha, na Europa de Leste.
Agora, há evoluções dependendo do país. Com os projetos OPRE a que nos candidatámos, em que começámos com oito alunos e ao fim de quatro anos já temos 40 no Ensino Superior… É um projeto  de excelência, que não existia em Portugal, por muitas entidades que existissem que quisessem trabalhar para as comunidades ciganas, nunca ninguém conseguiu alcançar. Porque não trabalha para os ciganos, assim como a AMUCIP – trabalhamos com os ciganos, o que faz a diferença.

Depois temos um outro projeto, que é o ROMED – estou a falar-lhe em projetos que eram projetos europeus e que agora são políticas públicas nacionais.

O QUE É QUE ISSO SIGNIFICA, SEREM POLÍTICAS PÚBLICAS NACIONAIS?

Significa que é o Governo que está a pagar aos mediadores para trabalharem, e que faz parte da carta de recomendações estatais, porque são projetos financiados pelo Governo e que vê que faz sentido financiá-los porque dão resultados.

Como dizia há pouco, temos o ROMED, que é um programa de excelência. ROMED é uma palavra que exemplifica Roma, do povo cigano, e Med, de mediação. Este programa cria grupos ativos nas comunidades ciganas, que fazem propostas que são apresentadas às autarquias e que podem ser mais bem trabalhadas pelas
próprias autarquias. Vamos supor que há um bairro social que está muito degradado e que tem um parque para as crianças brincarem, mas que está todo estragado. A proposta do grupo ativo é que a autarquia dê as tintas, os parafusos e o próprio grupo ativo, com os habitantes do bairro, pinta e atarraxa os parafusos.
É sempre uma partilha, não é só pedir por pedir. É um exemplo, como podia ser uma pintura exterior dos prédios.

Estamos a terminar agora em dezembro a quarta geração do programa, que já conta com quatro mediadores a trabalhar a nível nacional, cada um com três freguesias. Por exemplo, um tem Torres Vedras, Almada e Lisboa, três territórios diferentes para trabalhar e onde criar grupos ativos. Dois têm Beja, Moura e Faro, porque as distâncias são muito grandes. E o último tem Viseu, para o norte. Estamos a abranger norte, centro e sul.

São programas que a Letras Nómadas tem estado a impulsionar no terreno, de forma que esses grupos ativos possam eventualmente avançar para o associativismo. Aliás, já foram criadas duas associações no Alentejo.

SEJA ENQUANTO MEMBROS CRIADORES DE ASSOCIAÇÕES OU ENQUANTO MEMBROS ATIVOS DA COMUNIDADE CIGANA.
Exatamente. E que proponham aquilo que quiserem às Câmaras. Porque as Câmaras podem aceitar ou não a proposta. Podem dizer que não têm tintas para pintar o prédio todo, mas que fornecem até ao segundo andar, por exemplo. Mas é sempre na lógica da partilha, nunca é pedir nada só por pedir.

Por exemplo, em Beja havia uns telhados com falta de telhas. A Câmara deu as telhas e os moradores colocaram-nas e deixou de chover em meia dúzia de casas de ciganos.

COMO É QUE VÊ ATUALMENTE O PAPEL E O CONTEXTO DA MULHER CIGANA EM PORTUGAL?

A mulher cigana é uma mulher muito forte, por iniciativa própria e mudança de mentalidades.
Em todas as culturas, ela recai sempre em cima do ombro da mulher. É a mulher que carrega a cultura e que tem de demonstrar que ela existe.
Não é admirar, portanto, que sejam as mulheres que querem mudar um bocadinho a cultura.
A nossa cultura é machista, há papéis bem definidos e tarefas direcionadas para as mulheres. É comum ouvir-se “tu aqui não falas porque isto é uma conversa de homens”, mas em casa quem fala são as mulheres e quem ouve são os maridos.

O papel da mulher é principal em tudo, em especial na própria educação das filhas. Os filhos têm mais liberdade, mas as filhas… Podem ir à escola, mas a mãe vai levá-las e buscá-las. A minha filha quis tirar o 9º ano, já depois de adulta. Era à noite, podia ir a pé, que a escola era perto, mas eu levava-a de carro e ficava à porta da escola à espera que a minha filha saísse. Era essa a lógica… Se algum cigano passasse e visse a minha filha a entrar sozinha na escola, à noite… “Olha, já anda na escola, à noite, sozinha…”. Mas se a vissem a entrar e eu a ficar à espera, era diferente.

QUE MENSAGEM DARIA NESTE MOMENTO ÀS MULHERES DA COMUNIDADE CIGANA, PRINCIPALMENTE ÀS MULHERES QUE TÊM UM PAPEL NO ASSOCIATIVISMO E NO ATIVISMO?

Acho que isto é muito importante, um investimento na educação. Sem isso não conseguimos ir a lado nenhum, não conseguimos levantar peso. Temos de saber daquilo que
estamos a falar e não há nada melhor que nos instrua que a escola. Seja para rapazes, seja para raparigas, temos de investir na escola, ponto final. E depois no associativismo,
acho que as mulheres, com o know-how que elas têm sobre a cultura cigana, de que fazem parte, e sobre a cultura de sociedade maioritária, em que elas também estão inseridas,
invistam na carreira de mediadoras socioculturais, ou mediadoras escolares, ou mediadoras municipais. Mas para isso têm de ter a instrução escolar. Quanto mais tiverem,
melhor é para elas porque podem ganhar mais. Não é só o enriquecimento a nível do salário, mas também uma forma de elas entenderem a realidade. Para mim, o que me importa mais é o enriquecimento pessoal.

O nível que atingirem é a chave que abre as portas. Eu tirei o primeiro curso em 1999 e já não quis voltar para as feiras. E ganhava muito mais dinheiro nas feiras. Mas a experiência e o conhecimento que adquirimos são tudo ganhos enormes, aquilo que aprendemos a diferenciar entre o gritar por um direito e o argumentar pelo mesmo direito. A comunidade cigana pode pensar que ao gritar nos ouvem mais, mas não ouvem. “Já lá está aquela cigana a gritar”. Se souberem argumentar, pedir um livro de reclamações quando algo não está certo, cinco estrelas.

Eu posso ser tudo o que eu quiser ser, sem nunca deixar de ser quem sou. Porque eu não me desviei um milímetro daquilo que é ser mulher, viúva, na comunidade cigana, bem pelo contrário.

Março 14, 2024
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