Faz sempre questão de dizer que “está” secretária de Estado e não que “é” secretária de Estado. Que balanço faz deste seu estar aqui, a assumir estas funções
Exatamente. Fui eleita por uma legislatura e trabalho – trabalhamos, eu e a minha equipa – por o período de tempo determinado. É assim que assumo o lugar, como transitório. Em novembro fará dois anos que assumimos estas funções e entendo ser um balanço positivo, na medida em que atravessamos um momento político especial, pois tudo, no Governo, está articulado. Nada se pode analisar de um ponto de vista autónomo.
Especial como?
Nós só podemos trabalhar a igualdade de género e a cidadania se os direitos básicos das pessoas estiverem protegidos. É difícil o empenho nestas áreas quando o Emprego, a Habitação, a Saúde, etc, não estão assegurados.
E estão?
Vivemos uma circunstância bastante positiva do ponto de vista económico. O estado e o sentimento de otimismo do país, baseado em resultados favoráveis, ajudam a que nos possamos voltar para esta área de governação que está sob minha responsabilidade, com a tutela do MinistroAdjunto, o que confere uma transversalidade que é fundamental para o cumprimento da nossa missão. E é um trabalho muito importante.
Mas no que sustenta o balanço positivo?
Neste contexto, relançamos uma dinâmica com as organizações não-governamentais (ONGs) e com a sociedade civil com quem mantemos uma relação de grande abertura, diálogo, confiança e construção conjunta. Só podemos trabalhar, a cidadania, por exemplo, em cooperação, em parceria. Não há outra forma de o fazer. E essa relação é mesmo muito importante, para que dê frutos.
Pode dar exemplos, por favor.
Sim. No âmbito da violência doméstica temos um grupo de trabalho que reúne, de dois em dois meses, para discutir livremente quer os problemas identificados, quer as propostas que o Governo tem para esta esfera de atuação. O grupo é composto por ONGs relevantes da área, instituições públicas, peritos. Um grupo onde se diz o que se pensa e se trabalha em soluções. Mas também me posso referir a outras ações, como por exemplo, as campanhas que temos desenvolvido no âmbito da violência doméstica, da violência no namoro, das comunidades ciganas.
E em matéria de Igualdade de género?
A legislação que foi aprovada pelo Parlamento, sobre paridade nos cargos de decisão das empresas cotadas em bolsa e das empresas públicas, foi um grande passo. Essa legislação insere-se na Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas, que tem vindo a ser discutida com a Concertação Social, e que comtempla não só esta questão mas também a revisão da licença de parentalidade, o combate às disparidades salariais e à segregação profissional e a conciliação da vida familiar e da vida profissional. É uma agenda estrutural para a sociedade portuguesa. Não há igualdade sem haver igualdade salarial entre homens e mulheres; sem que o poder e a tomada de decisão sejam partilhados entre homens e mulheres; sem que no seio da família haja uma verdadeira partilha das responsabilidades familiares entre homens e mulheres.
No combate à violência doméstica e de género, para além do grupo de trabalho que referiu, o que destaca?
No último ano e meio, a nossa estratégia nacional de combate à violência doméstica e de género foi ampliada e multiplicada nas suas respostas. Quando chegámos ao Governo, no interior do país, havia uma carência de respostas muito acentuada. Só existia uma resposta por distrito e estamos agora a duplicar esses protocolos de intervenção em parceria com ONGs e organizações públicas, bem como a aumentar as instituições que fazem parte desses protocolos. Pretendemos, desta forma, ter respostas mais céleres e eficazes às vítimas que se encontram fora dos grandes centros urbanos. Este novo modelo já foi inclusivamente adotado por municípios do litoral, onde também havia carência de respostas. Inicialmente, 2005/2008 os municípios não faziam parte e agora são chamados a intervir e até a financiar, com valores irrisórios, estas respostas que solicitam uma atuação multidisciplinar mais alargada.
Quantos municípios estão envolvidos até ao momento?
Temos em vigor sete protocolos, com os seguintes municípios:
Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém, Sines, Odemira, Aljezur, Belmonte, Covilhã, Fundão, Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Ferreira do Alentejo, Ourique, Arronches, Campo Maior, Castelo de Vide, Elvas, Marvão, Monforte, Portalegre, Alter do Chão, Avis, Crato, Fronteira, Gavião, Nisa, Ponte de Sor, Sousel, Oliveira de Azeméis, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo e as freguesias de Viana do Alentejo, Alcáçovas e Aguiar. E prevemos assinar mais quatro protocolos em breve.
E quanto à mutilação genital feminina?
O plano de intervenção relativo a esta matéria está a terminar. Mas aquilo que identificamos é a necessidade de um trabalho permanente junto das comunidades onde sabemos que existe essa prática e com, também, uma aproximação aos líderes religiosos, sensibilizando-os, pois sabemos que têm um papel fundamental junto das comunidades que ajuda a travar a prática. Integramos aqui não só a Comissão para a Igualdade de Género mas também o Alto Comissariado para as Migrações com papel ativo nesta matéria. E estamos, claro, a desenhar um novo plano de atuação para 2018. As campanhas para a Educação, junto de escolas que têm comunidades com esta prática são, também, uma prioridade, bem como a formação em geral e a direcionada para os técnicos de saúde.
Saliento, ainda, que estamos a trabalhar com a Guiné Bissau contra estas práticas nefastas através de campanhas de sensibilização nos aeroportos por onde sabemos que estas meninas passam, tanto cá, como lá. Em março passado, levámos às Nações Unidas este nosso modelo de atuação.
E a iniciativa Roteiro para a Cidadania?
Um sucesso! É uma iniciativa muito dinâmica que percorreu todo o país. (ver caixa). Termina em outubro e estamos a preparar uma publicação que colige o que de melhor foi feito e, muito importante, com a devolução do que este projeto levou às pessoas. Vamos, também, fazer uma exposição na área da Saúde Mental, em parceria com as unidades de saúde envolvidas. Enfim, realizamos uma série de iniciativas, não só municipais como outras, de carácter mais abrangente na área da promoção da Cidadania. Pensamos, ainda, com base numa metodologia da Maria de Lurdes Pintasilgo, fazer audições públicas por todo o país sobre, por exemplo, os objetivos de desenvolvimento sustentável. Mas há outras ações, decorrentes deste impulso de a carrinha da Cidadania percorrer vários pontos do país. Conseguimos com este projeto pôr crianças, jovens e adultos a falarem e a pensarem sobre Cidadania. Temos previstas outras ações, para 2018, que decorrem desta. Estamos a trabalhar nisso.
Apesar de em outros moldes, está prevista uma continuidade. O “calcanhar de Aquiles” de muitos projetos é a pontualidade. Muitas vezes, não há verba para prosseguir com o trabalho benéfico dirigido a diferentes populações…
Quando lançamos projetos e ou candidaturas temos que ter perspetivas de futuro. Temos de ver bem o que queremos desse projeto. Por muito que tenha um princípio, um meio e um fim – como este, do Roteiro da Cidadania – temos de o pensar com potencial desdobramento de ações, ainda que noutros formatos. Apesar de o seu fim estar planeado. Outra coisa, distinta, é criar projetos que fornecem respostas sociais. Aí sim, a questão que coloca faz todo o sentido. E das duas uma: ou se apoiam projetos que têm um estudo de viabilidade financeira, pós prazo de conclusão do projeto, encontrando soluções; ou então, quando se lança um projeto para aquele determinado período de tempo, deve ter, na sua programação, bem clara, essa conclusão de que não pretende apenas ser um projeto, mas sim uma resposta permanente por colmatar uma lacuna.
Houve uma altura em que, por exemplo, na luta contra a pobreza, isso aconteceu muito. Os projetos transformaram-se em respostas sociais. Mas agora, é diferente. Quando avançam, os projetos já encerram essa avaliação, já são ajustados e já se percebe claramente qual a sua finalidade.
No caso da cidadania e Igualdade de género, apesar de se promoverem ações pontuais, interessantes e necessária, é fundamental inserir os temas nos curricula desde cedo…
Sim. E este é um ano decisivo nessa matéria. A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania vai ser implementada, este ano letivo, em 235 escolas públicas e privadas que integram o Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular, através da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento lecionada nos anos iniciais de cada ciclo de ensino.
O que nós pretendemos é que as escolas integrem nos seus programas esta área de intervenção e contribuir para que as crianças e os jovens tenham pensamento crítico sobre as matérias da Cidadania. E para isso é necessário integrar, também, a Educação para a Cidadania no sistema de ensino. Arrancamos com projetos piloto nestas 235 escolas e, depois, a ideia é alargar a estratégia nacional a todo o país.
E relativamente à população refugiada e aos menores não acompanhados, tem desenvolvido alguma ação?
Temos trabalhado com o programa de recolocação da agenda europeia para as migrações. Portugal, como sabe, tem acolhido refugiados ao abrigo desse programa. Desenvolvemos ações com a sociedade civil e temos mais de 90 municípios com quem colaboramos com vista à recolocação das pessoas em diferentes cidades do país, fazendo por não criar guetos e muito empenhados em promover o processo de integração mais adequado. Tanto as IPSS como as ONGs têm tido um papel bastante ativo em toda a rede que se tem formado para dar apoio a esta população. As Misericórdias, a Cruz Vermelha, o CPR e a PAR, para citar algumas, são fundamentais neste acolhimento. Ser refugiado não é o mesmo que ser imigrante; há uma grande diferença que tem de ser levada em conta. O refugiado, foge. O imigrante escolhe. Só aí há desde logo uma enorme diferença. Tudo isto tem de ser muito bem trabalhado. A questão cultural e linguística são basilares em todo este processo de integração e estamos todos muito atentos e empenhados em fazer um bom trabalho de articulação entre todos os organismos envolvidos, com vista a dar a melhor e a mais humana resposta. É um desafio muito grande para o país, que sempre esteve e está disponível para acolher.
Relativamente aos menores não acompanhados, temos feito algumas diligências no sentido do acolhimento, mais uma vez por via de ações integradas dentro da agenda europeia das migrações, nomeadamente através da recolocação. Temos ainda um projeto piloto, pequenino, mas de grande significado, em parceria com uma associação grega, a Metadrasi, em que acolhemos menores afegãos e de outras nacionalidades, fora dos programas europeus, que procuram asilo.
Relativamente à plataforma dos estudantes sírios que, inclusivamente, já elogiou…
É um bom projeto, que o Presidente Sampaio já promoveu. E tem sido um bom exemplo nacional e internacional. Não é um projeto nosso. Temos feito algumas pontes de colaboração e tem potencial para ser replicado. Logo no início deste processo, foi uma ação eficaz de apoio aos jovens refugiados, permitindo-lhes que continuassem os seus estudos; é uma iniciativa nacional de que todos nos devemos orgulhar.
Que projetos evidencia, promotores da diversidade e da interculturalidade?
Portugal sempre foi um país que apostou na interculturalidade. Nós temos cerca de 170 nacionalidades no país a falarem 100 idiomas diferentes. Por si, creio que este facto revela muito sobre um país como o nosso. Somos um país cosmopolita, de portas abertas. Não podemos esquecer que temos a experiência da emigração, que sabemos, também, o que é sair e ser acolhido lá fora. Também com isso, creio, aprendemos a bem colher. Um grande exemplo das questões da interculturalidade, em Portugal, e que até já nos valeram um prémio, são os centros de apoio ao imigrante. As lojas de apoio ao cidadão, especializadas no apoio ao imigrante, são um bom exemplo. Até mesmo fora de Portugal, são indicadas como uma boa prática a replicar. Isto também espelha a nossa atenção e cuidado com o Outro, de cultura diferente. Outros bons exemplos são a nossa Lei da Nacionalidade e a Lei da Imigração que apesar de não serem perfeitas (não há leis perfeitas) são consideradas das melhores leis do mundo em termos internacionais.
Tem levado a cabo diversas campanhas, em diversas áreas. Estão, agora, a preparar uma junto das comunidades ciganas, dirigida à população em geral.
É verdade. É a primeira vez que o Governo português se associa e promove uma campanha contra a discriminação nas comunidades ciganas e estamos a fazê-lo em parceria com a EAPN Portugal. As comunidades ciganas são a maior minoria que temos em Portugal e a que sofre mais discriminação. Por isso entendemos ser necessária uma mensagem clara que, independentemente da etnia, reforce que todas as pessoas têm o direito a ter o projeto de vida com que sonham. Outra iniciativa importante que tivemos foi o alargamento do programa de bolsas de estudo para ciganos e ciganas no ensino superior. No ano passado atribuímos 25 bolsas e este ano alargamos para 30. Este é um bom exemplo de uma iniciativa que nasceu de um projeto de uma ONG – o “Opré Chavalé” – e que, pelo seu mérito e bons resultados, o Governo decidiu transformar em política pública.
Mas há outras campanhas, como por exemplo, o combate à violência, quer de género, quer no namoro, que levamos a cabo com o empenho da academia e que estão a ter um grande efeito na população a que é dirigida. Trabalhamos com jovens e dirigimo-nos a eles. O público-alvo são eles próprios. São ações necessárias de sensibilização que entendemos ventilar através destas ações mais direcionadas e que dão os seus frutos.
E sobre a Carta Portuguesa para a Diversidade, criada o ano passado, quer falar?
Sim, claro. É um documento assinado por um grande número de organizações e, muito interessante de se verificar, esse número tem aumentado a bom ritmo, uma vez que estão sempre a surgir pedidos de adesão. É direcionada a empresas e a instituições que estão empenhadas no bem-estar do ser humano, enquanto trabalhador. E o que eu acho verdadeiramente fantástico é que é muito mais do que uma declaração de intenções. A equipa de gestão da Carta, em conjunto, tem desenvolvido formação e sensibilização direcionadas para essas organizações, subordinadas a temáticas fundamentais. Ainda há pouco tempo participei numa ação dirigida à comunidade LGBTI. Mas repare, já antes da “Carta”, tínhamos ações muito importantes neste sentido, da promoção da igualdade: o “Prémio Igualdade é qualidade”, que distingue empresas que promovem a igualdade de género; o prémio “Viver em Igualdade” para os municípios, entre outros. Ou seja, o que se pretende, com a Carta para a Diversidade e com o “Selo”, é uma atuação mais abrangente, que permeie a diversidade por categorias. Sem tirar, claro, o mérito ao que já se fazia e continua a fazer. O importante, nesta matéria, é reforçar por todos os meios estes valores.
Pela primeira vez, um terço do parlamento português é ocupado por mulheres. Quer comentar?
É bom, claro que é bom. Mas é lamentável ter levado tanto tempo a acontecer, desde que a lei foi aprovada, há dez anos. Portanto, os 34% de mulheres no parlamento não nos deve satisfazer, deve apenas indicar que estamos no bom caminho, que que vale a pena lutar. No que reporta à ocupação do cargo de presidente de câmara, por exemplo, estamos nos 7%; ao nível de presidência da assembleia municipal, estamos nos 10%; ao nível de vereadoras, 26%, e no que reporta a presidentes da junta de freguesia, estamos nos 11%. Estas percentagens demonstram bem que há ainda muito a fazer. A lei não resolve tudo. É preciso a lei aliar-se à prática. É preciso que haja uma consciência coletiva da necessidade de ter homens e mulheres nos cargos de decisão públicos, pois é positivo para a democracia e para a representatividade. Votam mulheres e homens e devemos ter consciência do quanto é positivo ter homens e mulheres a representar-nos. É um princípio democrático básico.
Por isso, para além da alteração à lei temos, ainda, de fazer muito caminho. Por isso é fundamental a educação para a cidadania, nas escolas, com vista a trabalhar estas questões e os estereótipos de género. E é necessário que os homens ocupem mais a esfera familiar e percebam que têm esse direito, porque a desigualdade não abrange só as mulheres; há outra escondida e mais silenciosa que também afeta os homens.
Fale-nos dessa desigualdade, mais silenciosa e escondida.
No que diz respeito aos direitos da família, os homens tem, também, o direito a cuidar dos seus, a ver crescer os filhos e a partilhar aquilo a que chamamos espaço familiar. Há estudos internacionais onde se pergunta às pessoas – homens e mulheres – o que é mais importante para elas (em 28 países) e em todas as sociedades, com mais ou menor intensidade, respondem que o mais importante para elas é a família. Só que depois, quando se trata de estar com a família, o cuidar, é muito mais adstrito às mulheres, ficando os homens com a missão de levar o sustento para casa. Nós precisamos de dar o salto. E o que temos de fazer é trabalhar fortemente para a mudança deste paradigma. As quotas criam uma garantia, não resolvem isto, mas são necessárias. Cito uma amiga: “ as quotas são como os aparelhos dos dentes, não são bonitos nem confortáveis mas são necessários e corrigem”. E é esse o papel das quotas!
Usando uma expressão que lhe li, numa entrevista: estamos ainda muito longe de elas serem “Bob, o construtor”. A mudança de mentalidades é lentíssima. Não a desmotiva?
Eu nunca me desmotivo. Sou muito resiliente. Eu acredito verdadeiramente na mudança e essa mudança só pode ser feita por cada um e cada uma de nós. E tanto nesta passagem por aqui, como noutras funções da minha vida, trabalhar e lutar sempre por estas causas. E quando trabalhamos por causas, trabalhamos sempre decididos a contribuir para mudar alguma coisa. E é isso que eu faço todos os dias, com muita convicção e, talvez por isso, nunca desmotive, muito pelo contrário. Trabalho sempre na perspetiva de fazer mais e melhor. Sempre.
Ao longo da sua carreira política, alguma vez foi discriminada, por ser mulher?
Eu costumo dizer que sou de um lugar muito especial. Eu sou do distrito de Setúbal, de onde ao longo dos anos as mulheres têm tido um papel muito ativo do ponto de vista da atividade política. Dentro do Partido Socialista, onde milito e onde tenho feito o meu percurso político, nunca tive essa experiência pessoal. O que não quer dizer que o problema não exista. Eu tenho consciência de que sou uma sortuda, um caso raro. Os números falam por si e muitas das minhas concidadãs, mulheres portuguesas, já foram discriminadas. E é essa consciência que nos impele a trabalhar ainda mais nesta área. Mas vou dar-lhe um exemplo caricato, que se passou comigo. Eu fui adjunta do secretário de Estado da Segurança Social, fui sua assessora política e, por diversas vezes, nas nossas deslocações de trabalho, me perguntaram se eu era a mulher dele! “É a esposa, não é?” Isto, desde logo, é uma leitura discriminatória e superficial. E também lhe posso dizer que o Parlamento é um mundo muito masculino, com rituais muito masculinos. E mesmo assim, quando cheguei lá, em 2009, era muito diferente do que é hoje. Mudou para um pouquinho melhor. Estas e outras experiências denotam o quanto há ainda para fazer e o quanto estamos a trabalhar em mudanças de paradigma.
Como é um dia na vida da secretária de Estado que tanto valoriza a família?
Uma correria desenfreada (risos). O meu dia começa em Montijo, onde vivo, com a rotina de levar o meu filho à escola. Sou sempre eu quem o leva, é uma questão de princípio. No carro, a caminho, cantamos, brincamos, conversamos, dizemos lengalengas. É um momento muito nosso. Depois, vão-me buscar e trazem-me para Lisboa. Aproveito essa viagem para passar os olhos pelos jornais. Depois varia. Há dias em que estou aqui no Ministério, em trabalho interno, com a minha equipa ou em audiências, e há outros em que tenho de sair. Eu sou de sair, de ir ao terreno, de estar com as instituições, de falar com as pessoas e de me inteirar dos problemas. E como entendo que não sou só secretária de Estado em Lisboa e no Porto, faço muitos quilómetros para me deslocar a todas as outras cidades. E Portugal é território nacional da ilha do Corvo a Bragança, por exemplo. Para dizer que há dias em que faço bastantes quilómetros, por entender que assim é que tem de ser, já que, como disse, faço questão de estar no terreno. É essa a minha obrigação e o meu dever. Estar com as pessoas, saber, de facto, quais são os problemas reais. Às vezes é fisicamente violento, mas não concebo estar secretária de Estado da Cidadania sem me relacionar com as pessoas e estar com elas e conhecer.
Essa necessidade de ir para o terreno vem-lhe da antropologia?
Não. Creio que não. Vem de mim própria. Eu sou licenciada em antropologia e a única coisa que fiz na vida, nesta área do conhecimento, foi a própria licenciatura. Enquanto antropóloga nunca tive nenhuma experiência profissional. Mas quero sublinhar que a antropologia nos dá uma visão do mundo, da realidade, muito diferente, muito abrangente. Nós confrontamo-nos constantemente com outras organizações sociais e percebemos que a nossa forma de organização social é uma entre muitas. Aprendemos as muitas e diversas possibilidades de estar em sociedade e com o Outro. E também me permitiu a ter uma maior consciência de que estou a olhar para os outros através dos meus valores. E esta é uma excelente forma de combater o preconceito e o estereótipo e aceitar a diferença.
Quando optou por antropologia já tinha essa consciência?
Na verdade não. Eu queria mesmo era ser atriz. Fiz provas para o conservatório, quando terminei o 12º ano, e não entrei. Depois fiquei um ano a fazer melhorias de notas porque não me tinha candidatado a mais nenhuma área. Entretanto, nesse período, fiz parte de um movimento internacional de estudantes e fui a uma conferência ao Equador e tive a oportunidade de conhecer algumas comunidades locais. Foi aí que comecei a pensar na possibilidade da antropologia, nesse contacto com a diferença. Mas vou-lhe dizer uma coisa: eu tenho um talento. Todas as pessoas têm um talento. O meu é ser assistente social. Nunca fiz formação nesta área, mas tenho o talento do serviço social que, associado à antropologia, se torna muito interessante neste tipo de funções.
E não fica com pena, de não cumprir essa ambição de ser atriz?
Não. Sabe, a vida é sábia. Sou certamente mais feliz, hoje, a fazer o que faço do que se fosse atriz.
Mudar o mundo é possível? Começa-se pela pré-escola?
Sim, é possível e quero acreditar que essa mudança está dentro de cada uma e de cada uma de nós. Quando, de manhã, uma criança coloca uma embalagem de papel na reciclagem está a mudar o mundo. Quando numa escola os professores dedicam dez minutos da aula a refletir na bomba que rebentou em Paris, no seu significado, o mundo está a mudar, está a criar consciência crítica. Quando cada voluntário está a doar do seu tempo, está a mudar o mundo. Quando estamos a contribuir para melhorar a nossa rua, estamos a mudar o mundo. O que quero dizer é que mudar o mundo, para melhor, não é uma utopia; e, sim, começa-se o mais cedo possível, por educar as nossas crianças. O ser social, esses conceitos, podem e devem ser trabalhados o mais cedo possível. Na escola e em casa. É fundamental que os meninos percebam que podem brincar com bonecas e que as meninas podem jogar à bola e brincarem com carrinhos. E que todos podem trepar às árvores. Temos de trabalhar para desatar as amarras de género, do racismo, dos estereótipos de toda a natureza. Todos estes conceitos devem ser introduzidos a partir da pré-escola.
E no seio familiar. A Educação começa em casa.
Sim mas a casa, felizmente, entra na esfera do privado e a sociedade contemporânea valoriza muito isso. O que quero dizer é que nós não controlamos o que se passa no seio da família. Mas é fundamental que a colaboração entre a família e a escola seja articulada, sempre que possível. Os pais devem, enquanto comunidade educativa, ser informados do que se está a fazer na escola, quais as atividades que estão a desenvolver. E não apenas serem informados dos resultados, das notas. Este é um trabalho que também precisa de ser feito apesar de algumas escolas já o fazerem.
“Um em cada quatro residentes em Portugal vive com menos de 322 euros”. É muito difícil educar para a Cidadania quando ainda há uma pobreza significativa, que ata, que trava, que dói a tantas famílias. Quer comentar, por favor?
Temos de trabalhar mais para combater a pobreza. Mas se tivermos uma comunidade com mais habilitações, com capacidades pessoais e sociais mais desenvolvidas, se tivermos uma escola que não discrimine, se tivermos igualdade de oportunidade para todas as crianças, esse combate fica mais facilitado e daqui a 30, 40 anos teremos um país com uma realidade diferente. Não é a minha área, como sabe, mas o Emprego é a chave. Por mais políticas públicas e medidas de proteção social que implementemos, as pessoas precisam de ter um trabalho para terem um rendimento. E os números do emprego, hoje, são mais animadores do que há dois ou três anos. Não podemos baixar os braços e acredito que estamos todos atentos e empenhados nesse combate.
O que é que eu não lhe perguntei e que gostaria que tivesse perguntado?
Creio que mais nada. Falamos um pouco de tudo.