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Frei Fernando Ventura

“Temos de nos livrar de pessoas que em nome da solidariedade e dos pobres, querem construir o seu projeto pessoal”

À margem com…
Frei Fernando Ventura
  • Um livro que recomende?
    Fé, fanatismo e convivência no século XXI, de Amos Oz
  • E um filme?
    A cidade da Alegria. Mas gostei muito mais do livro. E o Cinema Paraíso, também gosto muito.
  • Um local que o convide?
    Açores. Digo sempre que ao 7º dia Deus foi descansar para os Açores.
  • Um pintor que o inspire?
    Tenho uma paixão secretamente declarada pela Graça Morais.
  • Um blog, jornal ou revista que leia sempre?
    Nisto sou de uma infidelidade absoluta…mas gosto de ler a Sábado e a Visão.
  • Um provérbio ou um poema? Qual?
    A obra do António Aleixo
Entrevista:

Fala sem rodeios, é certo, e vive rodeado de pessoas que o querem ajudar a ajudar. Mas também já lhe apareceram outras, dentro de portas, a «usar os pobres e a solidariedade como fachada» e isto não perdoa a ninguém. Mas não está desencantado. Frei Fernando Ventura acredita que ainda «há pessoas muito boas. Não são muitas as que lutam genuinamente contra a pobreza e a exclusão social a tempo inteiro. Mas existem. São poucas, mas existem. E estão no terreno a trabalhar afincadamente e a fazer a diferença». Franciscano Capuchinho, nasceu em 1959 na freguesia da Senhora da Hora, Matosinhos, onde viveu até aos 17 anos. Desse tempo, guarda memórias de companheirismo fraterno e um coreto cheio de significados, entretanto demolido, mas sempre cenário de boas recordações.

Fez-se homem do mundo e muito atento a tudo à sua volta. Principalmente ao ser humano. Atualmente vive em Itália e anda entre Portugal e São Tomé e Príncipe; vai onde precisarem dele. Fez os estudos primários e secundários na cidade do Porto; partiu para Bordéus onde frequentou o curso de Medicina e, mais tarde, iniciou a sua formação em Teologia no Instituto de Ciências Humanas e Teológicas do Porto, finalizando a licenciatura em Teologia, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Trabalhou como professor, animador, radialista, enfermeiro e, em 1993 partiu para a “cidade eterna” onde se licenciou em Ciências Bíblicas, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Regressou ao país natal em 1997, responsabilizando-se pelo Movimento Nacional de Dinamização Bíblica e professor de Sagrada Escritura no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro. Na “Comunidade Vida e Paz” acompanhou de muito perto, toxicodependentes, alcoólicos e sem abrigo. Ouvi-lo falar da Bíblia é inspirador e, mesmo os crentes, (re)descobrem um Jesus Cristo tão próximo “que acampa na tenda ao lado da nossa”.

No âmbito do Movimento Bíblico e como biblista, que também é, dedica-se a promover encontros, conferências e retiros de formação bíblica nos cinco continentes; colaborando como especialista em assuntos religiosos e, frequentemente, é convidado a comentar em muitos órgãos de comunicação social nacionais; tem publicados diversos artigos e livros, sendo autor do primeiro estudo escrito em língua portuguesa sobre Maria no Islamismo. Conhecedor de como funcionam as organizações da economia social, afirma ser necessário haver mais controle. «Quem atribui estes estatutos tem de controlar, anualmente, como as instituições particulares de solidariedade social e as organizações não governamentais atuam. Mas controlar de facto, não ficar sentado nos gabinetes a receber papeis e dossiers escritos, relatórios que ninguém lê e muito menos controla ou audita. A tal monitorização que pedem para alguns projetos tem de ser feita às próprias instituições, no seu todo. Não estou a acusar ninguém pessoalmente, estou a acusar um sistema que por falta de mecanismos, de pessoas, permitem que os trafulhas sobrevivam». O ano passado, através do Banco de Leite, fez chegar um total de 35 toneladas de alimentação, material escolar e desportivo às crianças de São Tomé e Príncipe; este ano procura uma casa condigna para os mais velhos. Fique a conhecer as causas que preocupam e movem Frei Fernando Ventura.

Como nasceu o Banco de Leite de São Tomé e Príncipe?

O Banco de Leite nasceu numa noite de copos. (pausa) De água. Digo sempre isto. (risos) Cheguei a São Tomé há 9 anos. Conhecendo todos os países dos PALOP, faltava-me conhecer São Tomé e Príncipe e a Guiné. Estava disponível para ir lá trabalhar, pesquisei na internet e enviei um e-mail ao bispo de São Tomé e Príncipe (Dom Manuel António Mendes dos Santos), o primeiro contacto a aparecer. Ofereci o meu trabalho, como biblista – que é a minha luta – tinha milhas da TAP e algum tempo disponível. Recebi uma resposta sucinta: anda já amanhã. Lá nos encontramos e ao jantar – uma lata de atum e duas batatas – rodeados de um calor de fazer transpirar as pedras, cada um com um copo de água na mão; colocou-me ao corrente do drama que estava a viver nessa época em que, no orfanato, havia leite apenas para três semanas. Trocamos ideias, procuramos soluções e assim nasceu o Banco de Leite. Ao fim de dez dias regressei a Portugal e com a ajuda dos órgãos de comunicação social, pela voz que me deram – estávamos em fevereiro – e já tínhamos assegurado leite até ao final do ano. De referir, ainda, que a mensagem, pela televisão, acaba por chegar aos Açores, ao responsável por aquele que agora se chama grupo “De Ilhas para Ilhas”, que me pôs em contacto com três empresas leiteiras que ainda hoje fornecem o leite para o orfanato. Todos os meses enviamos para lá cerca de uma tonelada, entre leite, papas e outros produtos. Em 2018 fizemos chegar um total de 35 toneladas de alimentação, material escolar e desportivo.

 

Visita esse orfanato, com certeza…

Sim. Logo na altura, quando o Dom Manuel me levou lá – uma velha casa colonial – o edifício estava muito degradado. A casa estava imaculada, limpíssima, senhoras muito amigáveis e zelosas a cuidarem das crianças, mas estavam uns vinte bebés num espaço exíguo. Em Portugal, tal espartilho, não seria permitido. Atualmente, graças à cooperação internacional e a alguns contactos de pessoas empenhadas nestas causas, temos uma obra de excelência. Foi inaugurado há um ano, após cerca de cinco anos de luta e de muito trabalho.

 

E o Banco de Leite também já chegou a Cabo Verde?

É verdade, na ilha de Santo Antão, cidade do Porto Novo já estamos a trabalhar. Gosto muito de Cabo Verde. Tem, também, pessoas muito boas. O meu coração está no Fogo, desde que, em 1998, visitei a ilha pela primeira vez. E o que mais me agrada, em Cabo Verde, é que de cada vez que lá vou, vejo progressos.

 

Quer destacar mais algum projeto em São Tomé?

Sim. O Projeto para o Desenvolvimento Integrado de Lembá (PDIL) na cidade das Neves, distrito de Lembá, a noroeste da ilha. Dá resposta aos inúmeros problemas sociais que afetam crianças e idosos desfavorecidos e famílias desestruturadas, abrangendo as vertentes educativa, apoio social, emprego e formação. Há 6 anos levei, daqui do Porto – isto é, fui abrir a porta – a organização não governamental Mundo a Sorrir, de dentistas voluntários, que já lá está a desenvolver um trabalho de excelência. Mas todo o trabalho que o PDIL está a desenvolver é de uma tremenda dignidade. Damos apoio domiciliário a 250 idosos, temos 30 em regime residencial. No que respeita crianças, temos 1.250 crianças, da primeira à sexta classe. É uma estrutura onde se servem 2 mil refeições por dia. Temos uma cozinha comunitária, uma carpintaria, uma alfaiataria, um centro de artesanato. O projeto visa a sustentabilidade, dá formação e emprego. O desemprego e o subemprego são autênticos flagelos em Lembá e no resto do país. A criação de uma oficina de carpintaria e marcenaria veio criar importantes postos de trabalho para além de dar formação a muitos jovens. A unidade produz, de forma sustentável, mobiliário diverso, mobiliário urbano e infantil e artesanato local. A falta de emprego para mulheres, sobretudo jovens, ainda é maior. Assim foi criada uma unidade de costura para, não só capacitar as pessoas, como também para criar emprego produzindo uniformes escolares, roupas tradicionais, artesanato e realizando arranjos de roupa do dia a dia.

 

Noto uma especial alegria no seu olhar enquanto fala destes projetos…

Uma das grandes conquistas foi a estufa de hortícolas. O clima é diferente e as pessoas, por ser quente, até podem achar estranho…mas resulta. Compro o plástico, ali na Areosa. E foi um casal de engenheiros agrónomos, dos Açores, dar formação e fazer a sua montagem. A estrutura, em madeira, foi feita lá, na carpintaria. Naquela carpintaria faz-se de tudo, desde móveis a caixões. Damos trabalho a 110 pessoas.

 

Então é um projeto sustentável?

Sim…apenas precisamos de mais comprometimento. E que, por exemplo, não nos façam encomendas de 7 mil mochilas e, depois, não as vão buscar. Foi uma encomenda de uma IPSS. Isto não se faz. Há muitos sacanas por aí. Há muita gente a viver à custa dos pobres e a enfeitar-se com eles. É indigno. De resto, sim, trabalhamos sempre visando a sustentabilidade dos projetos que é o que nos permite mantê-los ativos, a servirem as comunidades no seu bem-estar.

Grupo de crianças sentadas em roda em orfanato - São Tomé e Príncipe
Grupo de crianças sentadas em roda em orfanato – São Tomé e Príncipe

 

E o que cultivam?

Um pouco de tudo. Apesar de algumas hortícolas, as mais frágeis, pelo calor imenso, não se aguentarem tão bem. Temos um enorme guarda-sol, mas, mesmo assim, há dificuldades. E nós precisamos, das couves, dos tomates, das alfaces. E, sempre que possível, cultivamos sem pesticidas, usando técnicas de plantas que protegem plantas e outras. E precisamos muito das hortícolas de folha verde, porque temos lá muitas situações de anemia, quer em crianças quer em idosos. É endémica. E precisamos muito de folhas verdes para a combater.

 

E o que mais salienta do projeto?

O complexo desportivo, por exemplo. Foi financiado pela Fundação Benfica, que reabilitou toda a estrutura e onde o Presidente da República arbitrou um jogo quando lá foi. Mas a grande glória, deste ano, foi termos conseguido 50 mil euros para a construção de uma casa de acolhimento para adolescentes grávidas. Era uma urgência muito grande. Pedimos ajuda ao atual Governo, disseram que não podiam, por falta de verbas. E começamos a obra sem dinheiro que é assim que grandes obras se fazem. E de repente chegou um cheque de 20 mil euros dos Rotários de Ponte de Lima; a Associação Amparo da Criança, aqui em Portugal, estava um pouco mais folgada nessa altura e contribuiu com 6 mil euros. A obra está concluída e o espaço é lindíssimo. A gravidez precoce é um problema. Temos meninas com 12, 13 anos grávidas. E apesar de incentivarmos o aleitamento materno, muitas vezes não é possível. E o leite de substituição é muito caro. Uma lata pode chegar até aos 20 euros, metade de um vencimento, em São Tomé. Acolhemos, no momento, cerca de 90 crianças e respetivas mães.

 

É notável o trabalho que tem vindo a desenvolver, nomeadamente com o Banco de Leite…

Eu recebo palmas que não mereço. Limito-me a aproveitar a visibilidade que às vezes me dão, para falar destas realidades. Há muitas pessoas a fazerem o trabalho mais difícil, a carregar caixas, a fazerem muitas outras coisas fundamentais acontecerem…

Frei Ventura e membro do Banco de Leite em São Tomé e Príncipe
Frei Ventura e membro do Banco de Leite em São Tomé e Príncipe

 

Mas se não se fizerem ouvir, não têm ajudas, para além de que são uma equipa…fazem um trabalho de equipa.

Sim. É verdade. Mas é preciso muito, muito cuidado. Há um ano e pouco vivi uma tragédia que não quero recordar. Tinha em formação, dentro de portas, um caso a começar a parecer-se com a Raríssimas… Felizmente o Banco de Leite salvou-se, mas deu para perceber como rapidamente uma estrutura que se faz com boa vontade tem lá dentro pessoas que têm projetos pessoais a serem manobrados e manipulados. Pessoas com algum nome na praça, no Porto e arredores que apenas pretendiam a sua própria elevação. Cheirou a dinheiro, a poder viver sem trabalhar. Tive de colocar um ponto final nisso. Poucos comportamentos humanos me enojam, mas o viver à conta dos pobres e o disfarçar de solidariedade coisas e situações que são apenas para enriquecimento pessoal, mete-me de facto nojo e não consigo perdoar a ninguém. Usar os pobres e a solidariedade como fachada não perdoo seja a quem for.

 

Está desencantado, frei Ventura?

Não. Há pessoas muito boas. Não são muitas as pessoas que lutam genuinamente contra a pobreza e a exclusão social a tempo inteiro. Mas existem. São poucas, mas existem. E estão no terreno a trabalhar afincadamente e a fazer a diferença.

 

Mas essas situações são golpes fundos nas atitudes solidárias, no querer ajudar desinteressadamente…

É verdade. As pessoas ficam com medo e muitas não dão dinheiro. Tentam ajudar de outra forma. Mas é legítimo. Começam a ser desvendados casos. É urgente um mecanismo de transparência absoluta na gestão destes dinheiros. De todas as campanhas solidárias que se acionam, para as vítimas dos incêndios e outras. Todas estas campanhas que se fazem…tem de haver uma forma de seguir com eficácia o curso dos donativos, desde a oferta até à sua efetiva aplicação ao fim a que estão destinados. Nós somos um povo fantástico, somos latinos. Quando nos pedem, damos, e damos muito. Mas temos dificuldade na manutenção de uma relação, ou seja, somos brutalmente generosos, mas quando se entra no patamar da necessidade de um acompanhamento, desligamos. E só quando há uma suspeita ou uma denúncia é que nos voltamos a interessar pelo assunto. Não pode ser. Terá de haver, da parte das autoridades, um melhor critério de atribuição de estatuto de IPSS, de organização não governamental e, depois, pensar num mecanismo transparente de vigilância apertada que permita acompanhar todo o processo desde a doação à aplicação.

 

Como fazer isso?

Quem atribui estes estatutos tem de controlar, anualmente, como as IPSS e as ONGs se comportam. Quer analisar os planos de atividades, quer as contas. Mas controlar de facto, não ficar sentado nos gabinetes a receber papeis e dossiers escritos, relatórios que ninguém lê e muito menos controla ou audita. A tal monitorização que pedem para alguns projetos tem de ser feita às próprias instituições, no seu todo. Não estou a acusar ninguém pessoalmente, estou a acusar um sistema que por falta de mecanismos, de pessoas, permitem que os trafulhas sobrevivam. E há muitos trafulhas neste mundo da solidariedade e muita trafulhice e uma grande incapacidade, por parte da tutela, de controlar tudo. Em causa, repare, está a credibilidade de pessoas sérias que estão no terreno a dar respostas que o Estado não é capaz de dar. Estruturas que são fundamentais para o bem-estar de comunidades e populações que de facto precisam, são afetadas por comportamentos indignos de energúmenos que só pensam na sua promoção pessoal. Infelizmente basta uma maçã podre para contaminar a restante fruta. Todos temos os nossos defeitos, mas isso é maldade em estado puro. Falsa solidariedade a ser usada em nome de quem precisa, é maldade pura. É premeditação. É crime. Ponto.

 

Foi por isso que recentemente afirmou numa entrevista que “vivemos um tempo de eus exacerbados”?

Também. Mas, infelizmente, os exemplos saltam de todo o lado. Na minha experiência de terreno vejo tantas vezes que não é fácil pôr duas ONGs a colaborar. Isto é terrível. Multiplicam-se esforços em vez de se partilharem utilidades. Se estamos no mesmo território, com o mesmo objetivo e a trabalhar para as mesmas comunidades porque há tão pouca ou nenhuma cooperação? Porque carga de água não juntamos os trapinhos e fazemos muito mais com menos? Chama-se ir além do eu para construir o nós e na economia social que devia ser o retrato disto, por excelência, abundam os eus exacerbados. Na economia social o que mata muitas iniciativas é a gestão do poder, dos pequenos reinos, do não abrir mão desse poder.

 

O que colide com o princípio do trabalho para o bem-comum que distingue a economia social…

Exatamente. É urgente essa consciência prática. Muitas vezes, não existe. Dou sempre o exemplo das fraldas. Numa instituição, por exemplo, consumo mil fraldas por mês. Noutra instituição, na rua ao lado, também se consomem mil fraldas por mês. E cada um de nós vai negociar com o fornecedor mil fraldas quando podíamos ir juntos e baixar o custo de 2000 fraldas… Agora pense nisto multiplicado por n entidades e, claro, a outra escala e necessidades. Anda tudo a trabalhar para o mesmo, mas não falam uns com os outros. Andam de costas voltadas e não se focam nos destinatários que, verdadeiramente, são a real importância disto tudo. Não é a estrutura nem quem preside à estrutura.

 

E como se combate o “empobrecimento dos relacionamentos interpessoais e pessoais” de que também fala?

Vivemos um tempo solteiro de afetos, viúvo de emoções e divorciado de compromissos e o ícone disto é a família à mesa cada um com o seu telemóvel. E no mundo, à grande mesa do mundo, estamos todos assim. A escola, as paróquias, as coletividades e, por antonomásia, a família tem de nos ajudar a combater isto. Temos de pousar o telemóvel e voltar a falar uns com os outros. Temos de combater esta tentativa de isolar as pessoas de as atomizar. A melhor forma de controlar alguém é conhecer-lhe os medos; controlar um país é conhecer-lhe os medos. E nós, ao deixarmos proliferar os medos estamos a deixar espaço aos fundamentalistas e aos populistas que nascem das esperanças frustradas.

Mulheres com crianças lavam roupa em São Tomé e Príncipe
Mulheres com crianças lavam roupa em São Tomé e Príncipe

 

Agir é urgente…

Estamos a viver um momento de nacional porreirismo e, tomara que esteja enganado, mas 2020 vai ser um ano muito complicado. A história não está a ser contada às pessoas. Passamos de um tempo de muito aperto, de muito sofrimento e, de repente tudo se amenizou. A sensação que tenho é a de estarmos a viver numa bolha de felicidade que não tem uma base real. Mas repito: tomara que esteja enganado. O Presidente da República tem contribuído para manter a população animada, mas creio que vem aí uma fatura pesada. Sei que o pior que se pode fazer é matar a esperança, mas tenho muito receio, estou muito preocupado com a possibilidade de se voltar a cair numa noite profundíssima.

 

Volto a citá-lo: “é necessário ter presente onde estamos, de onde viemos e para onde vamos”?

Essa é a minha costela judaica. Nós, judeus, sobrevivemos porque nunca perdemos a memória da história. Costumo dizer, a brincar, que perdoar até perdoamos, mas esquecer é que não esquecemos nunca. É de uma ignorância do tamanho de uma catedral querer julgar uma época noutra época.  Temos assistido, nos últimos anos, a um certo clique pseudointelectual que nos quer fazer ter vergonha da nossa história. Fazer-nos sentir vergonha da história que fomos, num presente onde não temos seguranças, absolutamente nenhumas, é condenarmo-nos a não termos futuro. Isto é muito sério. E de repente a sensação que temos é a de que estamos a ser governados por uma cambada de idiotas, de gente sem raízes, de gente sem referências. Tenho muito pouco respeito por gente que não respeita a sua história.

 

E do Príncipe, que notícias nos dá, depois do apelo que fez o ano passado, pedindo ajuda para crianças que estavam a passar fome?

Certamente conhece a história triste da ONG ‘Ligar à Vida’ que abandonou a ilha, devido a problemas com a justiça em Portugal, deixando tudo nas mãos de duas irmãs fabulosas, a irmã Eufrosina Medeiros e a irmã Maria Franco, de 80 e 75 anos, respetivamente. Conseguimos ajudar as crianças depois de lançarmos uma campanha gerida pela associação Amparo da Criança – Banco de Leite. Essa parte está resolvida. Mas tudo faz falta. O Príncipe é uma “carica”, tem 7.500 habitantes. Crianças e Idosos são a população mais fragilizada. O Lar Casa Betânia foi uma das estruturas que ficou em estado de necessidade de reconstrução. Mas os utentes permaneceram, assim como as despesas, que são muitas. Pedi ajuda ao Presidente da República que visitou a ilha o ano passado e que nos prometeu ajuda, mas, até ao momento, ainda nada conseguimos. Por via da Mota Engil, temos 10% garantido de 317 mil euros que são precisos para a casa. Em São Tomé esta obra custaria metade. Mas continuo a bater às portas. Sei que se irá fazer, só não sei se a estrutura que existe aguenta muito mais tempo.

 

Que balanço faz do trabalho destes 8 anos em São Tomé e Príncipe?

É muito positivo. Revivo a experiência feliz, de três anos da minha vida (1990-93), no Vale da Amoreira e na Baixa da Banheira. Nessa altura vivi com um santo, o engenheiro Gil de Vasconcelos que depois de viúvo pediu a entrada na ordem como irmão doado. Partilhei com ele um saco azul, que era mesmo azul, que estava no chão do nosso quarto. Nunca nenhum de nós contou o dinheiro que lá pôs. Nunca faltou. E pagávamos rendas de casa, água luz, telefone. Só não dávamos ajudas em dinheiro. Todos os dias vivíamos milagres. Conto um, daqueles que se podem tocar com os dedos: os ofertórios das eucaristias de domingo –  do Vale da Amoreira e da Baixa da Banheira, duas freguesias civis, duas igrejas, a mesma paróquia – rendiam, quando corria bem, sete mil e quinhentos escudos. No Vale da Amoreira, estava eu a dar aulas, foram-me chamar, dizendo que estava um bebé de 15 dias à chuva, a viver debaixo de um plástico, com dois barrotes e um bocado de alcatifa, filho de um jovem casal pobre. Era preciso, ao menos, dar-lhe uma barraca, daquelas prontas a montar, já com aloquete e tudo. Custava trinta contos. Pequei num caixote de papelão, forrei-o com papel de fantasia, fiz-lhe uma ranhura e, no final das missas disse que precisávamos de 30 contos para comprar a barraca. No final, tínhamos 30 contos e 800 escudos. Quando contávamos o dinheiro entrou na sacristia uma senhora a pedir fraldas para o filho. Dei-lhe os 800 e escudos e no outro dia fui comprar a barraca para aquele casal. E é assim. Nestes oito anos, por todo o lado onde vou, seja a fazer cursos bíblicos, seja a participar em conferências e mesmo via redes sociais, tenho pedido. Peço para socorrer outros. E com a ajuda de todos, comunicação social inclusive, tenho encontrado pessoas fabulosas que me ajudam a ajudar. Mas, como lhe disse, também temos de nos livrar de pessoas que em nome da solidariedade e dos pobres, querem construir o seu projeto pessoal. Para contrabalançar essas, encontramos outras, de coração e atos belíssimos que ajudam sem esperar nada, rigorosamente nada em troca.

 

E como é o seu trabalho na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé?

Sou papagaio. (risos) Faço tradução simultânea. Já há 16 anos que estou com eles; tenho feito alguns trabalhos para a Conferência Episcopal Italiana; também trabalho para o Sínodo dos Bispos. Tenho trabalhado em Italiano e Inglês, mas este ano, pela primeira vez, trabalhei em português porque o Português foi admitido como língua oficial, no Sínodo dos Jovens. Este ano será sobre a Amazónia. Foram os bispos brasileiros a fazer o pedido ao Papa, para que o português passasse a ser língua oficial e o Papa aceitou. E assim surgiu ter trabalhado no dicastério e trabalho, ainda, para a Ordem dos Capuchinhos, Ordem Franciscana Secular, há já quase 30 anos.

 

E como biblista, o que mais destaca do seu trabalho?

Destaco um pedido que ainda hoje me arrepia. Eu tive a sorte de, no Instituto Bíblico, em Roma, ter conhecido alguns gigantes do biblismo mundial. Um deles, Alonso Shoekel, um dos maiores especialistas em literatura sapiencial bíblica, numa das nossas conversas, disse-me: “nunca deixes de ensinar a bíblia aos pobres”. E isto ficou cá dentro. E, por isso, estou sempre disponível para o fazer. Desde que esteja cá, em Portugal, estou sempre disposto a ir onde me chamarem. Tenho encontrado pessoas muito abertas a estes desafios, de compreender a Bíblia, de estar disponível para a horizontalidade das relações. A Bíblia que ensina que o cristianismo não é uma religião, mas um desafio de relação interpessoal; a relação com Cristo ressuscitado, desde o antigo ao novo testamento.

 

Franquear a entrada no texto bíblico, no seu entendimento, é uma missão difícil?

Não. É simples. É situar o texto no contexto de nascimento e dar chaves de leitura às pessoas. O texto nasceu numa época, escrito por um autor, para um destinatário. O próprio texto bíblico, hoje, tem outros destinatários. Como é que a estes destinatários se vai explicar o essencial da mensagem? O aborrecido é que normalmente nos perdemos nos trocos. Ficamos a discutir trocos. E depois temos – estou a falar do clero – uma ignorância gigantesca do que é a Bíblia. Há honrosíssimas exceções, claro, mas assistimos a homilias que é de puxar os cabelos. Transformamos os comentários à palavra de Deus em pias considerações ou de pios conselhos quando o que está lá é vida. O que está em causa é ajudar as comunidades de hoje a procurar o seu sentido de ser. O essencial está na Bíblia que é um desafio e uma proposta de relação. Temos de construir relações e perder o medo de Deus. Se a Bíblia desafia para alguma coisa, desafia para a terra e não para o céu. Nós andamos muito convencidos que vamos todos para o céu sem termos passado pela terra. O Deus de Abraão, o Deus de Isac, o Deus de Jacob, o Deus de Jesus Cristo não é um Deus do céu, é um deus da terra. É o Deus de “cigano”, da estrada, do pó e do vento. A presença de Deus na história, Shakan em hebraico, significa isso mesmo, vizinho. Falo de um Deus próximo, um Deus que planta; que espeta as espias da sua tenda, ao lado da minha, no mesmo acampamento de gente que peregrina em direção à “terra prometida”. Está tudo por descobrir. Falta descobrir o sentido do tu, o sentido do eu e o segredo da construção do nós. E, mais uma vez, não quero generalizar, mas entendo porque há paróquias a esvaziarem-se, porque estamos a não conseguir explicar às pessoas como se vai à vida. E quando não se vai à vida também não há vontade de ir à missa.

 

Descodificar a bíblia é preciso…

Eu dou sempre este exemplo: se hoje uma pessoa, na Serra da Estrela, escrever uma carta e, entretanto, usar a expressão “ fiquei a ver navios” e essa carta daqui a três mil anos for descoberta, um fragmento dessa carta, numa investigação qualquer e alguém a ler, analisar a data em que foi escrita e o local de onde a escreveram pode concluir que, naquela altura, passavam navios na Serra da Estrela! Demonstro assim, de forma simples, a enorme importância de situar o texto no contexto. Porque é isto que, tantas vezes, se faz com a Bíblia.

 

Pegando num apelo seu – “é preciso ressuscitar palavras” – que palavras gostaria de ressuscitar?

Com frequência, peço às pessoas para dizerem, olhando-se nos olhos, eu gosto de ti; eu amo-te. Até ao gosto de ti ainda é fácil, depois complica-se. Temos de ressuscitar estas palavras. Matar estas palavras é matar os nossos afetos. Torna-se cada vez mais difícil dizer eu amo-te; de perder a nossa segurança, por isso estamos a deixar de o dizer. Quando digo a alguém eu gosto de ti, eu estou a dizer “preciso de ti para ser feliz”; mas quando digo eu amo-te, eu estou a dizer “eu não posso ser feliz sem ti”. Por isso, Deus é amor. É ler São João…

 

E como se dá com o título que a cidade de Fafe lhe atribuiu: Embaixador da Terra Justa?

A minha relação com a cidade de Fafe é estreita; vem da primeira vez que lá estive, a convite da Câmara Municipal, com o Joaquim Franco, apresentar um dos nossos livros. E eles têm uma iniciativa belíssima “Fafe Terra Justa” que visa gerar diálogo com pessoas diferentes, de todos os quadrantes. E vamos para a rua, para os cafés conversar, debater ideias. Ainda hoje, por exemplo, recebi uma ajuda de Fafe para o Banco de Leite. Conjuntamente com a Maia e a Ribeira Grande, são municípios que tem estado incondicionalmente com o Banco de Leite.

 

Onde vai buscar tanta energia para correr de um país para o outro ajudando a que as coisas aconteçam, ajudando a entender a Bíblia?

Quando se vê vida à nossa frente ou viramos as costas ou vamos à luta. E quando vemos gente concreta com nome e apelido a viver situações aflitivas, temos de nos mexer.

 

O que gostaria de ter respondido e que eu não lhe perguntei?

Mais nada. Os temas que me preocupam são estes.

Julho 22, 2019
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