Porque se alterou a denominação de Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural para Alto Comissariado para as Migrações?
A alteração decorreu, antes de mais, da evidência de que o perfil migratório do nosso país nos últimos anos sofreu mudanças significativas. Nesse sentido, não apenas o nosso saldo migratório se tornou, desde 2011, negativo, o que requer uma atuação determinada para procurar compensar essa perda populacional, como se entendeu que o desafio do acolhimento e integração dos refugiados poderia ser apoiado pela experiência de sucesso do ACIDI com os imigrantes. O ACM, não perdendo qualquer das competências do anterior ACIDI, viu apenas ser-lhe acrescida capacidade de resposta no domínio mais amplo das migrações, agora compreendendo todo o ciclo migratório, desde logo pela mobilização de todos os Ministérios e serviços públicos com competências em matéria migratória e de apoio à integração em torno do Plano Estratégico para as Migrações, como reequacionou todo o trabalho desenvolvido, procurando adaptá-lo a esta nova realidade migratória. Em tudo o resto, continuamos a fazer o que o ACIDI já fazia, mas agora com uma visão mais ampla.
Sendo que foi o maior e o único gabinete (com nomeações políticas do Estado); agora a estrutura já está melhor definida?
Um dos desafios que enfrentámos aquando do início do meu exercício destas funções, em 2014, foi dar seguimento a um concurso de recrutamento que havia sido lançado no primeiro trimestre desse ano para o preenchimento de 16 lugares no mapa de pessoal do Alto Comissariado. Na verdade, sendo um serviço público altamente reconhecido e acreditado, até mesmo internacionalmente, a sua equipa era constituída há quase duas décadas por pessoas com vínculos extremamente precários. Esta volatilidade e insegurança para muitas das pessoas que connosco colaboravam, mas desde logo para o próprio serviço, não eram benéficas para ninguém. Desse processo, concluído em maio deste ano, resultou a entrada de novos colaboradores, bem como a fixação de diversos dos colaboradores anteriormente nomeados que, por seu mérito, conseguiram preencher alguns desses 16 lugares. A equipa está agora mais consolidada a esse nível.
Como tem sido, desde 2014, suceder a Rosário Farmhouse?
Em 2014, quando tomei posse, tive ocasião de dizer publicamente à Dra. Rosário Farmhouse que o legado que me deixava era muito valioso pois havia sido construído sobre camadas de legados dos Alto-comissários anteriores. Essa tem sido uma imagem do ACM: a construção incremental a partir de um legado assente em consensos e excelência. Tenho tentado estar à altura desse desafio e, nesse sentido, creio que o facto de já trabalhar no ACM há 15 anos facilitou a tarefa, na medida em que há um conjunto de princípios neste instituto público que, conhecendo bem, procurei salvaguardar desde a primeira hora. Este é um trabalho para gente apaixonada por aquilo que faz, mas com muito método e disciplina para conseguir todos os dias responder com qualidade aos milhares de beneficiários das nossas iniciativas. É um trabalho muito desafiante.
Qual o balanço destes dois anos que se completam no próximo dia 1 de julho?
Faço um balanço muito positivo e sinto, global e humildemente, que aqueles que me rodeiam também o fazem. De forma pragmática, em dois anos consecutivos cumprimos os nossos objetivos a 100 por cento, tal como sinalizam os nossos instrumentos de gestão e avaliação pública. Esse foco na Missão, sem perder o tanto de bom que já era feito, construído por uma equipa extraordinária e por parceiros fantásticos, parece-me ser já parte do DNA do agora renovado ACM. Estamos a fazer mais e melhor, mesmo que com meios financeiros muito reduzidos face ao que já foi o orçamento desta organização. Os reconhecimentos recentes, que continuam a colocar Portugal como o segundo país do mundo com melhores políticas de integração, e agora até mais perto da Suécia, vieram demonstrar isso mesmo.
O que mais destaca da sua experiência enquanto diretor executivo do Programa Escolhas (promover a inclusão social e a igualdade de oportunidades de crianças e jovens em contextos vulneráveis), criado em 2001?
O Programa Escolhas foi, e continua a ser, uma enorme escola para todas as pessoas que o fazem acontecer e que dele beneficiam. Destacaria dois elementos dessa aprendizagem que me são absolutamente importantes no quotidiano enquanto Alto-comissário: o método e a proximidade ao terreno. O método importa-me pela impossibilidade de gerir o ACM, pelo menos com a dinâmica que hoje apresentamos, sem que tal assim fosse. Temos hoje no terreno mais de 1500 colaboradores diretos e indiretos, que mobilizaram, em 2015, mais de meio milhão de participantes. Sem uma enorme capacidade de organização interna e sem método não conseguiríamos tudo o que estamos a fazer. Hoje temos um rumo traçado e seguimo-lo com instrumentos de gestão e com disciplina, permitindo-nos ir muito mais longe. A outra aprendizagem que trago do Escolhas, onde aliás, e por inerência de funções, continuo ligado enquanto Coordenador Nacional, é a da proximidade, da subsidiariedade, do localismo. Tudo o que fazemos funciona melhor, quando assente em parcerias locais, que mobilizem os parceiros da sociedade civil, as autarquias mas, igualmente, as próprias pessoas. Tenho tentado transportar essas lições para a prática do ACM.
E atualmente, o que de mais relevante está a acontecer no âmbito desse programa governamental?
Acabámos de lançar a sexta geração do Programa Escolhas (2016-2018), num novo apelo à sociedade civil para apoiar a inclusão social das crianças e jovens que nascem do lado errado das oportunidades na vida. Esse esforço tem uma novidade muito significativa pois é agora também internacional. Face ao reconhecimento internacional do Escolhas, foi possível apoiar a replicação do Programa em contextos tão distantes como o México, a Suécia ou a Colômbia. A partir desse interesse que fomos sentindo, e respondendo às necessidades de muitos jovens portugueses e luso-descendentes, com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros avançamos com o apoio direto do Programa a projetos Escolhas no Reino Unido e no Luxemburgo. Relevaria também a novidade de passarmos a ter candidaturas anuais. Assim, aos 90 projetos que se iniciaram em março deste ano, juntar-se-ão novos projetos que começarão, tudo indica, em janeiro de 2017, pelo que eventuais candidatos devem ficar atentos ao último trimestre de 2016, quando, previsivelmente, abriremos novas candidaturas.
E sobre a crise de refugiados que a Europa está a viver? Deixe-nos com a sua perspetiva e fale-nos do que tem sido feito pelo ACM, para além das campanhas?
Creio, antes de mais, que temos que ser prudentes no uso de expressões como “crise de refugiados”. Num continente com 500 milhões de habitantes, a chegada de 1 milhão de requerentes de asilo corresponde a 0,2% da população da Europa. Países como o Líbano, com quatro milhões de habitantes, terão recebido um número semelhante, mas que corresponderá a 25% da sua população total. Creio que, mais do que uma crise de refugiados, estamos a viver duas crises que se interligam: eventualmente dos instrumentos nacionais e coletivos de gestão destes fluxos e – seguramente – de solidariedade entre Estados-membros de uma União Europeia baseada em Direitos Fundamentais. Desde Setembro de 2015, o ACM tem estado integrado num Grupo de Trabalho da Agenda Europeia das Migrações, juntamente com diversos organismos públicos a preparar o Plano Nacional para o Acolhimento e integração dos 10.000 refugiados que Portugal se comprometeu a receber, bem como no processo de recolocação das pessoas refugiadas. Desde a primeira hora se juntaram a este Grupo de Trabalho os Municípios e diversas entidades da sociedade civil, entre elas a Associação Nacional de Municípios, a Cruz Vermelha Portuguesa, o Conselho Português para os Refugiados, a Plataforma de Apoio aos Refugiados, A União das Misericórdias, entre outras. Esse tem sido um papel fundamental do ACM, o de preparar as comunidades locais para o acolhimento e a integração, bem como os próprios técnicos que estão na primeira linha de acolhimento. A criação, no ACM, do recente Gabinete de Apoio à Integração dos Refugiados veio consolidar, igualmente, o acompanhamento e monitorização das entidades de primeira linha e dos próprios refugiados, com quem contactamos permanentemente de forma a assegurar a boa integração. Esta forma portuguesa de gerir as recolocações, a partir de um balcão único gerido pelo ACM mobilizando todos os sectores que podem apoiar na recolocação, é hoje muito cobiçada em toda a Europa de onde nos chegam, cada vez mais, pedidos de informação e de visita.

O que pensa do Plano de Apoio lançado pela Comissão Europeia?
Vejo-o como uma tentativa muito bem intencionada de, solidariamente, responder a um desafio que não é de nenhum país ou região, mas de um conjunto de 28 países que assentam a sua cooperação na solidariedade. A Agenda Europeia das Migrações, lançada pela Comissão Europeia em Maio de 2015, assenta precisamente nesta partilha de responsabilidades. Existe um método de trabalho, existem regulamentos e até existe financiamento. Tendencialmente temos todos os ingredientes mas, na prática, ao não existir uma distribuição equitativa do esforço que deveria ser coletivo, faz com que tudo seja posto em causa levando à necessidade de novos acordos como o da UE-Turquia. Enquanto não tivermos soluções definitivas na origem dos problemas, respostas solidárias para a recolocação e reinstalação de forma equitativa na Europa, bem como enquanto não criarmos formas regulares de chegar à Europa, estaremos sempre a procurar resolver a jusante aquilo que precisa de solução a montante.
Somos um povo de facto acolhedor? A nossa história de grande miscigenação diz que sim. E a sua experiência?
Um estudo recente da Universidade de Oxford, lançado na OCDE, em Paris, no passado dia 17 de junho, diz-nos que, entre 21 países inquiridos, Portugal é o país onde os seus cidadãos mais se mostram generosos no acolhimento dos refugiados, com 68,2% dos respondentes a manifestarem-se nesse sentido. A média de respostas cifra-se nos 45%. Por outro lado, em 2011, em plena crise, o Eurobarómetro referia que apenas 3% dos portugueses consideravam a imigração um problema. Essa é, para além dos números, a minha experiência. E quanto mais viajo, mais tenho essa noção: há em nós um sentimento de alteridade difícil de encontrar noutros contextos. Nós sabemos que aquilo que nos separa dos “outros” é muito pouco. Nós fomos os beneficiários do Azorean Refugee Act, depois da erupção do vulcão dos Capelinhos, nos Açores, quando 10.000 portugueses foram acolhidos nos EUA. Nós fomos os 500.000 retornados que nos anos 70 Portugal acolheu. Essa experiência torna-nos muito recetivos e acolhedores. Dá-nos até um sentido de reciprocidade que se encontra bem plasmado nas políticas e práticas de integração em Portugal.
Foi aprovado o Plano Estratégico para as Migrações, que procura promover a ligação, acompanhar e apoiar o regresso de emigrantes portugueses e o reforço dos seus laços a Portugal. O que está a acontecer em concreto?
Desde logo o que passou a acontecer foi ter sob um mesmo plano um conjunto de respostas que até aqui eram feitas de forma descoordenada. Esta matéria, sendo da competência direta do Ministério dos Negócios Estrangeiros, passou a ser reportada de forma integrada, viabilizando também sinergias com o ACM. Desde logo com um conjunto de iniciativas de inegável mérito que, se até aqui eram apenas para imigrantes, por via do mainstreaming, passaram a abranger também os nossos portugueses não-residentes. Seja nas áreas do empreendedorismo, do apoio ao desenvolvimento local das comunidades de origem dos emigrantes ou da efetiva manutenção do laço a Portugal, temos vindo a apostar em ações em parceria que permitam perceber algo que para nós é óbvio: no século XXI, Portugal tem que ser onde estiverem portugueses. Esta abordagem desterritorializada, em rede, pode ter um enorme impacto num país que tem mais 4,5 milhões de portugueses fora dos seus 92.000 km2. Se soubermos fazer isto, teremos uma capacidade de atuação alargada muito interessante. Recentemente, no dia 10 de junho, por exemplo, e em parceria com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, lançámos um projeto conjunto para reforçar a cidadania e a igualdade nas comunidades. Entre outros objetivos queremos reforçar o vínculo da participação cívica e política dos nossos emigrantes. “Longe da vista mas perto do coração” é o mote que temos dado a estas ações inovadoras. Manter a ligação é o primeiro passo para isso. É isso que, de forma experimental, temos vindo a fazer.
E a linha de apoio ao Migrante, qual o balanço que faz desde a sua ativação até ao momento?
Esse é um bom exemplo do mainstreaming que referi antes. Desde há mais de uma década que o ACM desenvolvia a Linha SOS Imigrante. Aquando do crescimento das saídas de portugueses, muitos ligavam-nos para essa linha a pedir ajuda. A esse pedido nós respondíamos com uma frase lacónica: “Peço desculpa mas esta linha é para imigrantes”. E do outro lado diziam-nos: “Mas eu sou imigrante no país onde estou”, ao qual nos retorquíamos com um: “Sim, mas em Portugal é emigrante”. “E então para onde posso ligar?”, questionavam-nos. A nossa resposta era; “Lamentamos mas não temos nada semelhante para si no país. Apenas para imigrantes”. Ora, isto não faz sentido algum. Por isso mesmo, passámos a ter uma Linha de Apoio ao Migrante (808 257 257), que, independentemente de se tratarem de imigrantes, emigrantes ou refugiados, faz o atendimento e reencaminha para as entidades competentes consoante os perfis migratórios. Para o cidadão migrante, seja ele imigrante ou emigrante, passou a haver um balcão único, um interface comum com a administração pública portuguesa, e isso faz toda a diferença. Desde esta mudança já tivemos cerca de 300 casos de portugueses que nos contactaram por esta via, em apenas nove meses. A maioria são reencaminhados para o MNE. Outros para a Segurança Social ou Finanças. Outros ainda, de tão simples, são respondidos pelo próprio ACM. Qualquer migrante percebe agora como interagir com Portugal.
Enquanto formador profissional nos domínios da inovação social, inclusão social, empreendedorismo social e migrações, o que tem a dizer sobre a formação em Portugal, nomeadamente nestas áreas?
Tenho assistido a uma dinâmica extraordinária no nosso país. A nossa criatividade e engenho são verdadeiramente notáveis e há, cada vez mais, um ecossistema montado que cria condições para o florescimento das boas ideias. Durante alguns anos eramos conhecidos como o país que tinha boas ideias mas que não tinha como transforma-las em ações. Vejo hoje uma nova geração de inovadores sociais que muito me anima. Gente muito capacitada e com uma energia muito positiva que está todos os dias a fazer a diferença.
Há alguma questão que não esteja aqui e entenda por bem ser esclarecida?
Gostava de destacar os avanços que temos tido no domínio da integração das comunidades ciganas onde, aliás, a EAPN Portugal, tem sido um parceiro de excelência. A Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas está com uma taxa de execução muito perto dos 100%, com mais de 660 ações daí resultantes desde 2013, 25% das quais decorrentes do esforço da sociedade civil. Lançámos, pela primeira vez, um fundo de apoio à implementação da Estratégia. Operacionalizámos o Observatório das Comunidades Ciganas. Apoiámos um programa pioneiro de bolsas de estudo para pessoas ciganas universitárias e estimulámos a emergência de novos líderes com um programa de capacitação para a participação cívica e política de jovens das comunidades ciganas. Este caminho que já está a se caminhado vai ser reforçado com dois programas no âmbito do Portugal 2020 que facilitarão a integração laboral e a mediação. Os nossos portugueses(as) ciganos(as) têm no ACM o organismo público com que podem contar na procura de soluções para a desvantagem social que aportam desde há 500 anos. Se soubermos contruir estas pontes, e temos hoje interlocutores nas comunidades ciganas que nos demonstram que sim, estou certo que daremos passos muito seguros para aquilo que todos desejamos: um Portugal ainda mais justo e solidário, em que todos(as) têm o seu lugar, incluindo os migrantes, os seus descendentes e as comunidades ciganas.