“Precisamos de garantir que todos os idosos são tratados com equidade e dignidade e que usufruem de oportunidades e contextos de vida em que podem realizar o que valorizam e participar plenamente na vida social, mas há ainda um longo caminho a percorrer”.
Diz que o “desafio de uma sociedade envelhecida não é apenas o de suprir as necessidades da população idosa mas também o de criar oportunidades para que esta população possa ter um papel ativo na sociedade e o de valorizar o seu contributo social”.
A revista FocusSocial conversou com a professora e investigadora Alice Delerue Matos que recebeu o prémio “Mérito de Docência”, pela Universidade do Minho, onde leciona há mais de vinte anos e que nos fala, também, enquanto coordenadora da equipa portuguesa do projeto europeu SHARE (Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe), um dos maiores projetos europeus na área das Ciências Sociais. A equipa SHARE-Portugal, entre outras funções, tem produzido inúmeros estudos que permitem a definição de políticas alicerçadas num conhecimento profundo da realidade. De referir que atualmente está a trabalhar sobre a forma como as pessoas mais velhas foram afetadas e estão a lidar com o impacto socioeconómico e na saúde da COVID-19. Os dados recolhidos em maio e junho e “novos dados que contamos recolher dentro de alguns meses vão permitir avaliar a forma como os sistemas de saúde e sociais responderam à pandemia nos diversos países e quais as lições que devem ser tiradas para o futuro”, revela a professora auxiliar do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, doutorada em Ciências Sociais, com especialização em Demografia, pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Alice Matos centra a sua investigação nas áreas da Sociologia do Envelhecimento, Sociologia da Saúde e Demografia, sendo autora e coautora de uma centena de publicações que compreendem artigos científicos em revistas internacionais e nacionais e livros, nomeadamente a organização do livro “Saúde: sistemas, mediações e comportamentos”.
Enquanto cientista social, o seu interesse e produção de conhecimento recai na área do envelhecimento, abordando o isolamento social, a solidão, as redes sociais, a utilização das novas tecnologias, os comportamentos de risco em saúde e a qualidade de vida das pessoas mais velhas.
É membro da direção da Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa, preside à Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Demografia, coordena a Área Temática “Dinâmicas Populacionais, Gerações e Envelhecimento”, da Associação Portuguesa de Sociologia e é consultora estrangeira do projeto ELSI-Brasil (Estudo Longitudinal da Saúde e bem-estar dos Idosos Brasileiros). Em 2008, recebeu o Prémio de Mérito de Docência, pela Universidade do Minho e, ainda, o 3º Prémio Boas Práticas de Envelhecimento Ativo com o projeto “Bem Envelhecer”, em 2012, atribuído pela Câmara Municipal de Braga e pela Fundação Bracara Augusta, fazendo questão de sublinhar que “apenas colaborei, durante alguns anos, contribuindo para a sua implementação e candidatura. Entendo que o prémio foi atribuído ao projeto e não a mim”.
Preside, também, à mesa do conselho geral do núcleo distrital de Braga da EAPN Portugal e acedeu a responder a algumas questões que nos dão a conhecer um pouco do seu trabalho e do trabalho desenvolvido por aquela organização não-governamental no distrito.
Entre o ensino e a investigação não consegue escolher qual gosta mais. “Gosto muito de ensinar, de ver o progresso dos alunos, de os fazer refletir e de os levar a cultivar o pensamento crítico, tão necessário na atualidade. Mas também gosto muito da investigação, quer da análise e interpretação de dados, quer da sua recolha que exige o contacto direto com as pessoas”, revela a professora e investigadora que, também, se mostra preocupada com os impactos da pandemia, nomeadamente “com as desigualdades que se estão a aprofundar. Onde está, por exemplo, a taxa social de internet e o livre acesso para quem não a pode pagar? Tanto as pessoas mais velhas, como as mais novas precisam de estar habilitadas a lidar com todas estas novas condições impostas pela conjuntura pandémica e as respostas são lentas ou inexistentes”, afirma Alice Matos, antevendo um futuro, a curto prazo, difícil, caso não se implementem medidas que combatam as disparidades provocadas e acentuadas pela COVID-19.
Como presidente da mesa do conselho geral do núcleo distrital de Braga da EAPN Portugal, como descreve o trabalho desenvolvido?
O Núcleo Distrital de Braga da EAPN Portugal tem desenvolvido trabalho em diversas áreas, das quais destaco, a criação e dinamização de projetos e grupos de trabalho envolvendo associados e entidades públicas e privadas; a capacitação de profissionais que atuam no território e de pessoas em situação de pobreza, bem como tem contribuído para a produção de conhecimento. Contamos com a participação de municípios, instituições particulares de solidariedade social e outras organizações, universidade e escolas, visando dar resposta a problemas sociais existentes neste território.
A capacitação dos profissionais tem sido promovida através da oferta de um conjunto alargado de ações de formação sobre temas tão diversos quanto a gestão de equipas, a intervenção social junto de famílias que sofrem múltiplos desafios a nível pessoal, familiar e social, a conceção de projetos de inovação social, etc; e tem sido também obtida através da participação dos profissionais que atuam no território, em grupos de trabalho que perseguem a melhoria contínua das práticas institucionais.
Este trabalho de capacitação abrange, ainda, um outro grupo da população – pessoas em situação de pobreza que integram o Conselho Local de Cidadãos e é a partir das capacidades e competências destas pessoas que procuramos contribuir para o seu desenvolvimento pessoal através, nomeadamente, da partilha das suas experiências de vida e da promoção da sua participação social.
De sublinhar que a produção de conhecimento sobre a realidade social do território quer sistematizando e interpretando informação de organismos oficiais, nacionais e estrangeiros, quer implementando projetos de investigação-ação, revela-se bastante importante e necessária.
Quais os projetos que destaca e porquê?
Dos projetos desenvolvidos com orçamento do Núcleo, destaco, por exemplo, o trabalho com o Conselho Local de Cidadãos que, como já referi, dá voz a pessoas que vivem ou viveram situações de pobreza e/ou exclusão social, valorizando as suas experiências e competências e contribuindo para uma sociedade mais inclusiva. Menciono, também, as várias edições do projeto Janus e o projeto Bem Envelhecer com três edições, ao longo de 10 anos (2008-2018), pois obteve importantes resultados de impacto ao nível da parceria entre instituições participantes e ao nível do bem-estar dos idosos abrangidos. Refiro, ainda, o projeto Cidadania Ativa também com três edições e que apoiou famílias desfavorecidas no processo de formação para a cidadania, contribuindo para a prevenção da reprodução geracional da pobreza e exclusão social. Aliás, convido a conhecerem mais aprofundadamente estas iniciativas no site da organização, pois estão lá, em detalhe. Já com orçamento comunitário, temos o projeto ACEDER Norte que promove o emprego da população de etnia cigana. E, claro, evidencio todas as parcerias, nomeadamente a participação da EAPN em projetos promovidos pelos municípios e pelas plataformas supraconcelhias do Ave e do Cávado, contribuindo com informação sobre diretivas europeias e políticas sociais europeias e nacionais. O Núcleo Distrital de Braga integra ainda o grupo de trabalho Envelhecimento, Incapacidades e Deficiência no âmbito daquelas plataformas. Por fim, mas não menos importante, destaco os grupos de trabalho interconcelhios que dinamizamos nas áreas da Infância e Juventude e na área do Envelhecimento.
O Núcleo distrital de Braga tem produzido muito trabalho no âmbito da infância e juventude. Quer dar-nos a sua visão sobre o tema?
O grupo de trabalho interconcelhio Infância e Juventude, que reúne associados locais da EAPN Portugal, foi criado em 2011, com base num conjunto de necessidades identificadas por estes associados. Recorre a metodologias de participação e de responsabilização das entidades participantes que dividem as tarefas entre parceiros. A temática deste grupo de trabalho é a Educação para a Cidadania, fundamental na capacitação das crianças e jovens em termos de desenvolvimento pessoal e competências interpessoais e de participação social, com efeitos positivos na construção da sua personalidade e bem-estar na infância e, mais tarde, na vida adulta. Foi neste âmbito que desenvolvemos o Jogo dos Direitos e a História infantil “João (Re) Faz a diferença!”.
De notar que os profissionais que integram este grupo de trabalho receberam formação sobre “filosofia para crianças” e implementaram esta metodologia nos contextos institucionais onde operam. As atividades desenvolvidas no âmbito deste projeto estão detalhadas na publicação “Manual de atividades de educação para a cidadania em contexto institucional e comunitário”.
Centra a sua investigação nas áreas da Sociologia do Envelhecimento, Sociologia da Saúde e Demografia. Na sua perspetiva, Portugal está a envelhecer bem?
Portugal tem envelhecido a um ritmo mais célere do que a maioria dos países europeus e é hoje um dos países mais envelhecidos do mundo, ocupando o 4º lugar no ranking mundial dos países com maior percentagem de população de 65 e mais anos, no total da população do país.
Qualquer país teria dificuldade em enfrentar este duplo desafio de se ajustar a uma população com um número relativo de idosos muito importante e de o fazer num espaço de tempo mais curto do que a grande maioria dos países com populações envelhecidas. E os desafios não terminam aqui. A população idosa do país é uma população muito heterogénea. Se a maioria dos idosos portugueses teve percursos de vida com reduzidas oportunidades de formação, baixos rendimentos e poucos cuidados preventivos de saúde, o que os torna, em grande medida, reféns do apoio do Estado e das famílias na satisfação das suas necessidades, há outros, com caraterísticas socioeconómicas que lhes permitem reivindicar uma posição distinta na família e na sociedade.
Mas o desafio de uma sociedade envelhecida não é apenas o de suprir as necessidades da população idosa mas também o de criar oportunidades para que esta população possa ter um papel ativo na sociedade e o de valorizar o seu contributo social. As Nações Unidas acabam de declarar 2021-2030 a década do Envelhecimento Saudável. Esta é a oportunidade de congregar esforços a todos os níveis, desde os governos à sociedade civil, passando pelas organizações públicas e privadas, comunidade científica e órgãos de comunicação social para uma ação concertada e colaborativa no sentido de melhorar as condições de vida das pessoas idosas, das suas famílias e das comunidades que integram. Precisamos de garantir que todos os idosos são tratados com equidade e dignidade e que usufruem de oportunidades e contextos de vida em que podem realizar o que valorizam e participar plenamente na vida social, de modo a poderem contribuir para uma sociedade mais solidária. Neste sentido, há um longo caminho a percorrer, tanto em Portugal, como no resto do mundo.
Coordena a equipa portuguesa do projeto europeu SHARE. Quer falar-nos um pouco deste trabalho?
O SHARE é um dos maiores projetos europeus na área das Ciências Sociais. A sua importância científica reside no seu caráter longitudinal, multidisciplinar e comparativo. O carater longitudinal permite apreender a dinâmica do processo de envelhecimento; já a dimensão multidisciplinar fornece uma perspetiva global deste processo enquanto que procedimentos rigorosos ao nível da conceção e implementação do projeto, asseguram a harmonização dos resultados dos diversos países. O SHARE disponibiliza à comunidade científica, de forma gratuita, dados sobre a saúde, o estatuto socioeconómico e as redes familiares e sociais de mais de 140 mil indivíduos, com 50 anos ou mais, residentes em 27 países europeus (+ Israel). Permite, ainda, comparações com projetos similares que o precederam nos EUA e no Reino Unido e com projetos que ajudou a criar e/ou desenvolver no Japão, China, Brasil, México, Tailândia, etc. A coordenação nacional de um projeto desta dimensão e nível de exigência é uma tarefa árdua mas também muito gratificante. A equipa SHARE-Portugal, além de assegurar, desde 2010, a qualidade da informação recolhida no âmbito do projeto, tem produzido inúmeros estudos que permitem a definição de políticas alicerçadas num conhecimento profundo da realidade. De referir que, atualmente, a equipa está a trabalhar sobre a forma como as pessoas mais velhas foram afetadas e estão a lidar com o impacto socioeconómico e na saúde da COVID-19. Os dados recolhidos em maio e junho de 2020 e novos dados que contamos recolher dentro de alguns meses vão permitir avaliar a forma como os sistemas de saúde e sociais responderam à pandemia nos diversos países e quais as lições que devem ser tiradas para o futuro.
A academia e as organizações não-governamentais deviam trabalhar mais em parceria ou considera haver já uma boa colaboração?
Considero que existe grande vontade de colaboração e alguma cooperação efetiva entre a academia e as organizações não-governamentais mas que é possível e desejável estreitar estas parcerias.
A academia deve assegurar a formação de recursos humanos capazes de responder aos novos desafios sociais e produzir conhecimento relevante para as organizações não-governamentais, nomeadamente. Estas organizações precisam de encarar o processo de formação dos seus colaboradores como um processo contínuo e indispensável à eficiência da intervenção social e de poder contar com a academia para atingir este objetivo. Precisam também de, em colaboração com a academia, se envolverem mais na produção e comunicação de conhecimento capaz de nortear políticas que contribuam para o bem-estar dos grupos de população mais vulneráveis.
Recebeu o prémio “Mérito de Docência”, pela Universidade do Minho, em 2008. O que mais a atrai na docência e como tem sido lecionar na atual conjuntura pandémica?
Atrai-me o papel de facilitadora no processo de aprendizagem dos estudantes. No desempenho deste papel procuro criar condições para o pensamento crítico dos estudantes e assegurar a articulação de saberes, alicerçados no conhecimento científico, dos diversos intervenientes no processo de ensino/aprendizagem.
Lecionar na atual conjuntura pandémica tem sido um desafio extremamente interessante. A complementaridade de um processo de ensino/aprendizagem presencial e à distância permite obter resultados que são difíceis de atingir num processo unicamente presencial ou exclusivamente à distância. Os meios tecnológicos disponíveis facilitam, por exemplo, o trabalho colaborativo entre estudantes e permitem que os momentos de contacto entre o docente e os estudantes sejam oportunidades para esclarecer dúvidas e definir o trabalho a realizar. O modelo de ensino tradicional que entende o docente como o detentor do saber e os estudantes como aqueles que nada sabem, é um modelo totalmente ultrapassado e o atual contexto veio precipitar avanços importantes num novo processo de ensino/aprendizagem que valoriza e cria condições para que os estudantes assumam um papel muito ativo neste processo.