Como se não nos bastasse o clamor que tem vindo a subir de todos os lados, em particular do PSD/CDS e ala direita do PS, sobre os perigos da ingovernabilidade do país e a indigitação de Passos Coelho pelo Presidente da República, começam agora as vozes da própria Europa, como Joseph Daul do Partido Popular Europeu, a comparar a actual situação do país à crise Grega que se viveu no último ano. Também Mariano Rajoy reagiu negativamente à unidade de esquerda portuguesa. O medo da desagregação económica da Europa, pelo contágio dos países que foram vitimados pelas perigosas políticas da austeridade, agita, não só os mercados, como também assistimos à saída do armário dos fantasmas de uma Europa em profunda convulsão económica, política e social. Se recuarmos no tempo, facilmente chegamos à comparação com o descalabro da social-democracia, nos anos 30, relembrando o aparecimento das Frentes Populares de Espanha (1936) e França (1935) e as consequências devastadoras como a Guerra Civil de Espanha e a ascensão do fascismo, que as Frentes Populares queriam, a todo o custo, evitar. A conjuntura económica era também de crise e não se trata de forçar nada, quando referimos aqui o Verão quente de 1936. É essa transversalidade que nos deve alertar para os perigos da época que atravessamos, agora, na Europa, ameaçada pela ascensão da extrema-direita e a consequente imposição de regimes anti-democráticos.
Não é preciso ser-se um entendido em ciências políticas para compreendermos como vacilam hoje todos os paradigmas políticos, que se alimentaram do bipartidarismo político, pelo avolumar das fissuras da União Europeia. Se esta correspondeu à necessidade da reconstrução europeia do pós-guerra, representando um ideal humanista sem paralelo na Europa, assente em pilares como a democracia, a liberdade e a igualdade, alargados aos vários países que a constituíam, hoje em dia vislumbramos muito pouco dessa nobre origem. Com a acentuação da crise económica e os jogos políticos que servem muito mais uma agenda de interesses pessoais e partidários, confrontamo-nos hoje com um poderoso e invisível monstro, que centraliza todo o poder, uma espécie de hobbesiano Leviatã, mas a uma escala muito maior e à qual é difícil escapar, a teia dos interesses que se servem da globalização (e que também a servem).
Ouvir as palavras de Daul sobre os perigos da esquerda radical, a propósito de um governo PS é algo que nos arrepia e nos faz pensar que tudo está mal nesta Europa, que verga a um aceno de figuras como a Merkel ou Schäuble. É caso para perguntar o que aconteceu à soberania dos estados e à ideia política que fundou a União Europeia: a própria democracia. Será que a ideia de democracia não comporta governos de esquerda escolhidos maioritariamente pelos povos? Essa contradição, que se tornou gritante no caso da Grécia e de toda a chantagem resultante da escolha política dos gregos, ao votar Syriza, começa a manifestar-se agora relativamente a Portugal e creio que se sucederá em Espanha, com a ascensão do partido Podemos.Também acredito que nas próximas eleições francesas acontecerá algo de muito próximo ou, então, teremos de nos preparar para uma catástrofe como a subida de Marine le Pen ao poder ou, ainda, uma aliança da direita francesa à extrema-direita para legitimar uma maioria no poder.
As contradições evidentes da União Europeia mais não fazem do que anunciar o seu colapso e antecipá-lo. Só quem não quer ler as linhas com que se escreve a nossa história comum, com a iminente ameaça da ascensão da extrema-direita e o consequente desaparecimento dos partidos do centro. A única forma que estes terão de resistir e garantir a estabilidade da governação será aliando-se à esquerda e criando barreiras à ascensão da extrema-direita, tal como aconteceu com as Frentes Populares da década de 30, ainda que tivessem fracassado.
Se as políticas do neo-liberalismo falharam redondamente, ao aplicarem desenfreadamente as medidas da austeridade que foram impostas por uma direcção europeia, que é surda e cega perante as políticas nacionais, então teremos de repensar os modelos políticos vigentes e a sua eficácia. Porque o que importa agora é reverter o fracasso da política europeia, combater os grandes flagelos que acometem os países mais vulneráveis da União, como a pobreza, o desemprego e devastação do Estado Social. Cabe-nos questionar as causas que conduziram a União Europeia ao seu fracasso político e tentar inverter a tendência, para escaparmos a uma visão apocalíptica desta Europa. Lembro-me da frase de Walter Benjamin, a propósito do desastre a que a social-democracia conduziu a Europa, na República de Weimar: “A catástrofe é a de tudo continuar igual” ou, ainda, a de “não puxar o alarme no comboio que caminha para o abismo”. É nesta situação que nos encontramos: um comboio que nos leva ao abismo, se não for travado a tempo. Com urgência, para sermos precisos.
Não podemos compreender a situação da União Europeia na actualidade, sem nos debruçarmos sobre uma outra questão que tem vindo a degradar a uma velocidade vertiginosa as relações entre os países da União Europeia. A chegada maciça de muitos (é difícil precisar) milhares de migrantes e refugiados, originários de países africanos e do Médio-Oriente, em busca de condições de vida na Europa, mais não tem feito senão para contribuir para os conflitos entre os países por causa das fronteiras. O espaço Schengen, que era uma das condições acordadas pelos acordos da União Europeia, permitindo a livre circulação entre os países europeus, ameaça fechar-se para quem chega e os piores receios fazem sentir-se. Se estas populações desprotegidas continuarem a chegar como acontece diariamente, o mais provável é não haver possibilidade de serem integradas de forma pacífica.
Por todo o lado ouvimos falar de maus-tratos, não só da parte da zona fronteiriça da Hungria, mas também de milícias organizadas, que tentam impedir a chegada dos migrantes e refugiados aos seus destinos. E esses movimentos, de uma maneira geral, são difíceis de controlar e tendem a crescer, exprimindo a xenofobia e o preconceito, reforçando assim as fileiras do Pegida (na Alemanha), da Génération Identitaire (França) e da Aurora Dourada (Grécia). Também ao Norte da França, com a concentração dos migrantes em Calais e que tentam atravessar o Canal da Mancha, a situação se tornou explosiva e a Inglaterra tem reagido de forma endurecida, para dissuadir a sua entrada em território inglês.
Todos estes factos, que são noticiados diariamente e não constituem uma mera e vaga especulação, contribuem para um aumento explosivo de tensões sociais, sobretudo em grandes cidades europeias, às quais afluem estes migrantes, em busca de melhores condições de vida. Se a Hungria optou por não os deixar passar, já a Sérvia resolveu acolhê-los e concentram-se agora em multidões que se encontram expostas ao Inverno e a condições cada vez mais difíceis de suportar. Ainda que alguns líderes, como Merkel, exijam uma resposta rápida dos restantes chefes de governo da Europa, o certo é que o consenso tarda a chegar e essas multidões concentram-se em campos, à espera de passar as fronteiras para chegar aos países mais ricos da Europa.
Até quando esta situação se tornará suportável, com as condições que se fazem sentir numa Europa acossada pelo desemprego e pelo aumento da pobreza? A confluência dos diversos factores, que parecem nada ter a ver, a um olhar distraído, indica uma concatenação explosiva que se prepara para toda a União Europeia e afectará sobretudo os países mais frágeis, do ponto de vista económico. Mas não deixará incólume uma Europa orgulhosa da sua organização e riqueza económica, uma vez que a tendência dos migrantes será atingir os países mais ricos da Europa. A entrada dos migrantes colocará um ponto final, a médio-prazo, à livre circulação no espaço da união europeia. Certamente que fechar o espaço de livre-circulação suspenderá uma das traves-mestras que constituiu a União Europeia. Por essa razão, a própria Merkel nos alertava, há pouco mais de uma semana, para a necessidade urgente de defender a unidade da Europa e o pretexto era precisamente o dos migrantes e refugiados. Quando todos pensávamos que seria a disparidade económica dos países do Sul e os do Norte a fazerem disparar os alarmes, eis que um novo factor ultrapassa a questão da crise económica. O prenúncio, convenhamos, não é bom e é desejável que nos preparemos para viver em estado de excepção muito mais cedo do que prevíramos. Porque quanto mais cedo nos prepararmos para o colapso, mais preparados nos encontraremos para tentar uma saída. A história repete-se e quando todos os sinais de alarme se acendem é preciso lê-los. Com atenção, para não repetirmos os erros do passado.