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A família em tempos de crise

A família em tempos de crise

Presidente da EAPN Portugal

Parece-me inegável que o risco de pobreza aumentou enormemente nos últimos três anos, incluindo sectores da classe média que nunca imaginaram encontrar-se em tal situação. Hoje, mais do que nunca, a pobreza e a exclusão social enquanto fenómenos sociais vão perdendo as suas fronteiras, deixando de ser fenómenos periféricos, vinculados a grupos, características, condições, para se tornarem um problema que atinge massivamente uma grande parte da população.

Infelizmente são cada vez mais evidenciados pelos meios de comunicação, histórias e alertas de algumas organizações do terceiro setor para o surgimento de novos grupos sociais afetados pela crise económica e financeira. A situação denota contornos preocupantes de uma crise que está a atingir franjas da classe média, criando situações em que estas são colocadas em risco de pobreza. Há de facto alguns indicadores de alerta preocupantes, como os pedidos de ajuda de pessoas da classe média às instituições que prestam apoio de emergência para necessidades básicas ou o aumento do número de pessoas com incapacidade de pagar as suas dívidas e que pedem ajuda a organizações de apoio ao consumidor ou ainda o número de pessoas obrigadas a entregar as suas casas aos bancos, resultado do incumprimento no pagamento de créditos. Por sua vez, as empresas continuam a fechar e a despedir trabalhadores, o desemprego entre os mais jovens e qualificados tem aumentado de forma alarmante, conduzindo em muitos casos ao abandono do país.

A pobreza já não é um fenómeno minoritário. Inclusive aqueles que não se encontram em situação de pobreza sentem uma enorme insegurança em relação ao futuro. O desemprego, a subida dos preços e a inflação, o aumento dos custos na saúde e na educação, os sucessivos cortes nos apoios sociais e os aumentos incomportáveis da carga fiscal colocaram uma grande parte das famílias portuguesas numa situação-limite, a passar por dificuldades extremas e de carência em bens essenciais.

As crianças estão especialmente suscetíveis aos efeitos da crise. O desemprego que atinge atualmente muitos casais causa desestruturação completa no seio familiar. A instabilidade criada á volta do emprego/ desemprego gera não só situações de carência económica grave, mas também situações de elevada instabilidade emocional e psicológica que influencia claramente as vivências das crianças e provoca em muitos casos problemas de aprendizagem, de inserção no meio escolar, de discriminação entre pares, de bulliyng, etc. O problema do desemprego de um ou dos dois progenitores leva muitas vezes a que as crianças abandonem os serviços de apoio educativo como ATL, creche e mesmo atividades extracurriculares por falta de dinheiro das famílias. Esta situação é prejudicial para as crianças porque se veem, de repente afastadas das suas rotinas diárias e da aquisição de novas competências.

Se, por um lado, o fato das crianças ficarem com os seus pais em casa poderia, à primeira vista ser considerado como um benefício ao nível das relações filiais, por outro lado, aquilo que se verifica é que as pessoas desempregadas não se encontram nas melhores condições psicológicas e emocionais para dedicar tempo de qualidade aos seus filhos, o que poderá acarretar custos acrescidos num futuro próximo. A instabilidade vivida pelos pais pela incerteza do futuro em termos de trabalho e de remuneração conduz a uma desorientação crescente no seio familiar, podendo inclusive originar a ocorrência de situações de negligência e mesmo de violência.

As pessoas idosas são outro grupo particularmente vulnerável e as condições são mais gravosas para as pessoas idosas que vivem sós. Nos últimos meses, várias notícias vieram a público revelando que as pessoas idosas estão a dar apoio aos seus filhos, nomeadamente do ponto de vista financeiro. Segundo a DECO, as pessoas com mais de 60 anos são, em grande parte dos casos, fiadoras dos filhos em dificuldades económicas e foram chamadas a pagar os créditos dos seus familiares. Esta situação é reveladora da vulnerabilidade de muitas famílias e do suporte económico que muitos idosos estão a dar às suas famílias. No entanto, esta situação é potenciadora de situações de violência e maus-tratos relativamente às pessoas idosas e mesmo de exploração do ponto de vista financeiro. Segundo a APAV, a pessoa idosa vítima de crime tem, em 54% das situações, entre os 65 e os 75 anos (2011).

O número destas situações tem vindo a aumentar, tendo-se verificado em 2011, 749 pessoas idosas vítimas de crime (14 por semana, numa média de 2 por dia).

O número de suicídios também aumentou. Segundo o relatório divulgado em março pela Aliança Europeia contra a Depressão, Portugal é o 3º país da União Europeia onde o suicídio mais cresceu nos últimos 15 anos. No mesmo sentido, especialistas da área da psiquiatria têm alertado para o facto de problemas como o desemprego que se tem vindo a acentuar com a crise e que tem feito pressão aos mais diversos níveis na vida das pessoas, têm vindo a provocar um aumento das doenças psiquiátricas, nomeadamente, a depressão (que é um dos fatores de risco do suicídio) .

Por tudo isto, é óbvio que a crise tem gerado muito sofrimento às pessoas e às famílias. Contudo, não quero terminar esta minha breve intervenção sem deixar aqui uma mensagem de defesa da família como rede social insubstituível. Ela representa um pré-requisito de um sistema social estável. É certo que nas últimas décadas houve mudanças significativas quer na estrutura e funções da família, quer na dinâmica interna familiar. Não vou aqui abordar o conjunto dessas mudanças nem produzir uma reflexão mais aprofundada sobre a família, mas gostaria de afirmar a importância da aposta na vida e na família como forma de combate à crise.

Precisamos de medidas de política que promovam, apoiem e dignifiquem a família. Desde logo, precisamos de uma política demográfica e familiar que incentive a natalidade. Um declínio rápido da população, como o que está a acontecer em Portugal, diminuirá rapidamente o nível de vida da população e afetará com gravidade a sustentabilidade da segurança social. Neste sentido, é necessário implementar de forma urgente medidas e políticas que atenuem ou contrariem este declínio o qual, dado a sua natureza geracional, se revela muito difícil de travar.

Precisamos de uma política que reduza as desigualdades económicas e sociais, o que pressupõe medidas que atendam também à necessária correção da desigualdade na repartição funcional do rendimento e a preservação dos recursos das famílias e dos indivíduos em situação de maior precariedade.

Precisamos de políticas que conciliem o mundo do trabalho com o mundo da família.

Precisamos de uma política que reforce a proteção à criança e, também ao adolescente, no sentido de minimizar os efeitos indesejáveis da alteração das estruturas familiares e de lhes assegurar um processo de socialização tão equilibrado quanto possível.

Precisamos, igualmente, de uma política dirigida aos idosos no sentido de os manter ativos e participantes pelo mais longo tempo possível e de lhes assegurar o apoio necessário – no seu próprio domicílio ou em instituições –, quando se torna evidente a perda de autonomia. Mas também que proteja as famílias idosas e as famílias multigeracionais, pois não podemos “fechar os olhos” às mudanças demográficas pelas quais estamos a passar, mas sim encará-las como desafios e trabalhar cada vez mais para a construção de uma sociedade “amiga de todas as idades”.

A família é um dos pilares fundamentais da nossa sociedade e olhando um pouco para aquilo que vos transmiti, posso dizer que tem sido muito maltratada. Cuidar da família (da instituição familiar) é, a meu ver, um “passo de gigante” para a construção de uma melhor sociedade, ou seja, de uma sociedade mais igualitária, mais justa, mais solidária e, permitam-me reforçar uma das nossas principais mensagens, uma sociedade livre de pobreza.

Outubro 21, 2013
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