“Repleto de dúvidas, incertezas e medos.
Carregado de sonhos, silêncio e segredos.”
Vinícius Dill
No fim da primavera e início do verão de 2015, a população portuguesa (e europeia) parece ter acordado para uma realidade que não é nova, mas que este ano adquiriu novas dimensões. De facto, há mais de uma década que surgem notícias sobre o Mediterrâneo enquanto um cemitério quer de imigrantes, fugindo à pobreza, quer de refugiados, que procuram escapar de perseguições e conflitos armados. Segundo dados do OIM, em 2004, foram registadas 296 mortes na rota do Mediterrâneo entre a África e as ilhas de Lampedusa, Sicília e Malta. Nessa altura as notícias referiam sobretudo a crise imigratória, no entanto, tratava-se de fluxos mistos de imigrantes e requerentes de asilo.
Foi, no entanto, nos anos de 2011, 2014 e 2015 que se verificaram fluxos mais elevados de refugiados e migrantes que atravessam o Mediterrâneo à procura de um lugar seguro ou de melhores condições de vida. Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), em 2011 foram registadas cerca de 70 mil entradas na Europa através do Mediterrâneo e 1 500 mortes derivadas desta travessia. Em 2014, os números aumentaram para cerca de 216 mil entradas registadas e 3 500 mortes. Mas de facto foi em 2015 que as entradas em território europeu quadruplicaram. Até Novembro, cerca de 866 500 pessoas entraram na Europa e 3 510 morreram neste percurso. Se é verdade que se trata de fluxos mistos, também é verdade que 84% destas pessoas são provenientes dos principais países de origem dos refugiados.
Os números e as imagens têm criado sentimentos contraditórios entre os europeus, oscilando entre a solidariedade e empatia e o medo e egoísmo. No entanto, esta Crise dos Refugiados, tal como tem vindo a ser conhecida nos meios de comunicação social, tem sido de facto uma crise dos refugiados e não uma crise europeia. No fim de 2014, na Europa (e sobre a alçada do ACNUR) existiam cerca de 3,800 milhões de refugiados ou pessoas em situações análogas, correspondendo a cerca de 21,6% dos refugiados sobre proteção do ACNUR e cerca de 16% do total de refugiados existentes no mundo.(1) Se tivermos em conta o total de refugiados estima-se que 86% se encontra nos países em desenvolvimento e que 25% esteja nos países menos desenvolvidos. De facto, e apesar dos novos fluxos de refugiados, a Europa continua a estar longe da Crise dos Refugiados existente em outras regiões do mundo, quer em termos de número de refugiados que recebe, quer na sua capacidade financeira para lidar com estes novos fluxos.
Para termos uma ideia da realidade vivenciada fora da Europa, podemos olhar para o ranking do ACNUR. O Líbano, por exemplo, tem sido o país que tem vivenciado nos últimos anos uma maior pressão devido ao fluxo de refugiados. Em 2014, segundo os dados do ACNUR, existiam 232,39 refugiados por 1000 habitantes e 111.738,96 refugiados por 1000 km2 (1º lugar nesse ranking no dois indicadores). Os países europeus com maiores proporções de refugiados são a Suécia com 14,77 refugiados por 1000 habitantes (9º país mundial com maior permilagem de refugiados) e Malta com 19.472,84 refugiados por km2 (classificado como o 2º país com maior densidade demográfica de refugiados). A Alemanha, país para onde, segundo as notícias que nos chegam pelos meios de comunicação social, muitos dos refugiados se dirigem, tinha em 2014 apenas 2,63 refugiados por 1000 habitantes (50º lugar no ranking) e 609,47 refugiados por 1000 km2 (22º lugar).
Se olharmos para a riqueza dos países da União Europeia percebemos facilmente que não é esta a região com maior pressão financeira causada pelo fluxo de refugiados. Dentro da União Europeia é a França o país com maior número de refugiados por PIB per capita (6,32), localizando-se em 44ª posição mundial. Uma realidade que está muito longe da vivenciada pela Etiópia que tem 440,27 por PIB per capita (1º posição neste ranking), ou do Líbano que tem 70.67 refugiados por PIB per capita (12ª posição).
De facto existe uma crise de refugiados, mas as principais vítimas desta crise não é a Europa ou os europeus, mas sim os refugiados. São eles as vítimas das guerras e das perseguições que os levam a fugir do país de origem. São eles as vítimas dos traficantes e dos gangues que lhes roubam parte ou a totalidade das poupanças que trazem para garantir a sua sustentabilidade no país de acolhimento. São eles que ficam à deriva no mar Mediterrâneo, em busca de um país de acolhimento que lhes garanta condições mínimas, ou em países de primeiro acolhimento onde permanecem com o futuro congelado e com condições de vida cada vez mais precárias.
Numa notícia publicada pelo ACNUR a 20 de Novembro, Dana Sleiman relata a situação vivenciada pelos refugiados no Líbano, país onde muitos refugiados podem permanecer, mas não podem trabalhar. Para poder trabalhar estes refugiados têm que obter a autorização de residência, sendo, para tal, necessário que entrem no país pelos postos de controlo oficiais nas fronteiras e terem documentos de identificação válidos. Devido aos riscos de violência associados a alguns destes percursos ou o receio de passar pelos postos de controlo Sírios (por exemplo, quando estes refugiados fogem de perseguições governamentais, ou quando têm receio de serem detidos devido ao serviço militar obrigatório), nem todos os refugiados têm acesso a uma autorização de residência. Um relatório de 2014 da Norwegian Refugee Council (The Consequences of Limited Legal Status for Syrian Refugees in Lebanon) refere que entre os 1256 refugiados sírios entrevistados, 34% não entraram no Líbano pelos postos de controlo oficiais. Por outro lado, a autorização de residência tem uma validade de 6 meses, havendo apenas uma renovação gratuita. Posteriormente as renovações têm um custo de 200 dólares. Como tal, dos 66% que tiveram acesso a uma autorização de residência, 28% não a renovaram.
Os resultados do inquérito (2), relatado por Dana Sleiman, referem que cerca de 90% dos refugiados têm dívidas por pagar, 40% estão em dívidas com os seus senhorios e 39% não têm acesso a saúde devido aos elevados custos dos tratamentos e dos medicamentos. Entre estes refugiados encontram-se pessoas que vieram com pouco mais do que a roupa do corpo, mas também pessoas que conseguiram trazer consigo as suas poupanças que desapareceram passado meses e anos sem possibilidade de acederem a um trabalho. Para sobreviverem, estes refugiados são obrigados a cortarem na alimentação diária tanto ao nível da quantidade, como da qualidade.
Os problemas no acolhimento de refugiados não são recentes. Por isso, desde a década de 70 que o ACNUR tem promovido programas de reinstalação. Reinstalação é a transferência de refugiados de um primeiro país de acolhimento para outro país que os aceita receber e que lhes garante uma residência permanente. A reinstalação permite não só dar uma solução duradoura para a situação dos refugidos, como permite uma maior partilha dos encargos e das responsabilidades na gestão de fluxos de refugiados entre diferentes países e regiões do mundo. Por outro lado, caso os programas de reinstalação fossem adotados por um número mais elevado de países, abrangessem um número mais elevado de refugiados e ocorresse de forma mais célere, diminuiria certamente a pressão sentida por muitos destes refugiados para recorrerem a traficantes em busca de uma solução duradoura.
Neste momento existem 28 países que aderiram ao programa de reinstalação do ACNUR, sendo que 14 países são Estados Membros da União Europeia. Este número continua a ser insuficiente. Em 2014 foram feitas 103,9 mil candidaturas à reinstalação e 73 mil refugiados partiram para os países de reinstalação. No entanto, nesse mesmo ano o ACNUR estimava a necessidade de reinstalar 691 mil pessoas. Para 2015, a necessidade de reinstalação é de 1 milhão de pessoas.
Portugal assumiu um compromisso com um Programa Nacional de Reinstalação em 2007, com uma quota mínima anual de 30 refugiados. Entre 2006, num processo piloto de reinstalação, e 2014, Portugal reinstalou 180 refugiados. Da quota de 2014, Portugal comprometeu-se a receber 45 refugiados, no entanto, os primeiros apenas começaram a chegar em Outubro de 2015. Os processos de reinstalação são, de facto, longos e burocráticos. Mas continua a ser urgente reforçar o compromisso dos países mais desenvolvidos com soluções duradouras para os refugiados.
O compromisso da sociedade civil com o acolhimento e integração destes refugiados é também uma condição importante para o sucesso destes processos. A Plataforma de Apoio aos Refugiados (http://www.refugiados.pt/) é um exemplo da capacidade da sociedade civil portuguesa unir-se por uma causa. São 30 membros fundadores e cerca de 180 membros aderentes que procuram em conjunto promover uma cultura de acolhimento de apoio aos refugiados, quer na sociedade portuguesa, quer nos países de origem e de trânsito.
A EAPN Portugal é um dos membros fundadores da PAR. Acreditamos que é importante acolher bem estes refugiados, mas será também essencial garantir as condições de integração. Para tal é importante não só garantir o acesso à educação, à saúde, à proteção social e ao emprego, tal como já está definida na lei, mas um acesso efetivo a estes direitos. Para isso é necessário continuarmos a lutar por um mercado de trabalho mais inclusivo; para o acesso a serviços de qualidade; por maiores níveis de igualdade social; por uma maior sensibilização da sociedade que permita contrariar sentimentos de racismo e xenofobia; e por uma Estratégia Nacional de Luta contra a Pobreza. Sem uma intervenção nas causas da pobreza e da exclusão social que existem em Portugal (e na Europa), poderemos ser um país modelo no acolhimento dos refugiados, mas correremos o risco de remete-los, a médio e a longo prazo, para a pobreza e a exclusão social.
1) É importante referir que nem todos os refugiados existentes no mundo estão sobre a alçada do ACNUR. No caso dos refugiados palestinianos, estes encontram-se sobre a alçada da Agência das Nações Unidas de Socorro e Trabalho para os Refugiados da Palestina (UNRWA)
2) Inquérito do ACNUR, da UNICEF e da PAM junto de mais de 4 mil agregados familiares de refugiados no Líbano.