Um desafio para as Bibliotecas Públicas e para as Instituições Particulares de Solidariedade Social em Portugal
“Há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.(…)”
Alexandre O’Neill
in “No Reino da Dinamarca : obra poética 1951-1965”
Lisboa, Guimarães Editores, imp. 1974. p. 50
Ao longo dos anos, as bibliotecas públicas têm vindo a assumir vários papéis, desde fortalecer os hábitos de leitura, promover o conhecimento sobre a herança cultural, assegurar o acesso dos cidadãos à informação, até apoiar, criar e participar em programas e atividades de instrução para os diferentes grupos etários.
Porém, as atividades de promoção e animação da leitura nas bibliotecas públicas portuguesas têm estado focadas maioritariamente no público em idade escolar. Os espaços de leitura destas bibliotecas são frequentemente usadas como salas de estudo por jovens e as atividades de promoção da leitura são na sua maior parte dirigidas a crianças, ocupando a “Hora do Conto” um lugar central nas mesmas.
Apesar de meritórias e necessárias, tais atividades não chegam a uma franja da população que é cada vez mais representativa na sociedade moderna: a população idosa. Em Portugal (que acompanha, a este nível, o padrão comunitário) tem-se vindo a registar ao longo das últimas décadas um fenómeno de envelhecimento demográfico, em consequência do aumento da longevidade, dos baixos níveis de fecundidade e também do crescimento dos fluxos emigratórios. Face a este fenómeno, grandes desafios são colocados à sociedade, sendo pertinente refletir sobre questões como a idade da reforma, os meios de subsistência e também a qualidade de vida dos idosos.
Numa altura em que, através do Programa da RBE – Rede de Bibliotecas Escolares,se conseguiu dotar uma grande parte das escolas de bibliotecas modernas, com professores bibliotecários responsáveis pela gestão desses equipamentos, as bibliotecas públicas não devem continuar a investir maioritariamente em atividades dirigidas ao público em idade escolar.
As bibliotecas públicas e os bibliotecários poderão e deverão ter um papel preponderante na realização de atividades junto do público acima dos 65 anos, concretamente na aplicação da
Biblioterapia a esse público.
A Biblioterapia é um termo usado para denominar uma terapia específica e que etimologicamente é constituído pelas palavras de origem grega “βιβλιο” e “θεραπε?α”(1). Biblio, que significa livro, refere-se neste caso a todo o tipo de material bibliográfico ou passível de leitura e terapia significa cura ou restabelecimento, podendo também ser entendida como prevenção. Desta forma, a Biblioterapia pode ser definida como uma terapia por meio de livros, sendo uma prática que utiliza a leitura para auxiliar indivíduos a lidarem com os seus problemas físicos e psicológicos.
Amplamente difundida em vários países, como os Estados Unidos da América e o Brasil, a aplicação da Biblioterapia em Portugal ainda está a dar os primeiros passos.
Em estudo realizado em 2013(2), relativamente às atividades de Biblioterapia aplicada a idosos promovidas pelas bibliotecas da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas em Portugal, ficámos a saber que menos de metade das bibliotecas (42% dos inquiridos) tinham em curso, à data, algum projeto nesta área e muitos dos projetos analisados previam atividades não seguiam as quatro fases do processo biblioterapêutico (a identificaçãodas características pertinentes dos membros do grupo com quem se vai trabalhar; a seleção dos materiais a usar; a apresentação da obra escolhida para cada sessão e o acompanhamento ou discussão, correspondente à parte final de cada sessão, onde é estimulado o diálogo). Muitos dos processos também não tinham em conta os componentes básicos da Biblioterapia:
- A catarse (pacificação e alívio das emoções);
- A identificação (assimilação de um atributo, negativo ou positivo, de uma personagem);
- A introspeção (reflexão sobre os seus próprios sentimentos, com possibilidade de mudança comportamental);
- O humor (transformação do que poderia ser objeto de dor em objeto de prazer – ação do ego contra as circunstâncias adversas);
- A introjeção (apropriação, através da ficção, num processo “de fora para dentro”de qualidades de uma personagem objeto de admiração);
- A projeção (atribuição a outros de características, sentimentos e desejos que o indivíduo desconhece ou que recusa ver em si);
- O diálogo (verbalização de sentimentos e ideias que ganham identidade e podem ser entendidos e desenvolvidos ao serem nomeados).
O mesmo estudo (FERREIRA, 2013) refere que as equipas responsáveis pelos projetos implementados nesta área são maioritariamente compostas por bibliotecários e técnicos de animação cultural. Em caso algum as equipas constituídas integram um profissional da área da Psicologia, o que nos leva a considerar que devem ser tomadas medidas que corrijam essa lacuna.
Não havendo possibilidade de as bibliotecas públicas poderem contar com psicólogos, educadores sociais e assistentes sociais no seu quadro (cenário que seria o ideal), torna-se imprescindível chamar os técnicos do quadro dos municípios a trabalharem em equipa com a biblioteca. Os municípios contam com psicólogos e assistentes sociais nos seus quadros técnicos, que poderiam ser destacados, em algum momento, para auxílio na implementação de projetos de Biblioterapia destinados ao público sénior. A sua colaboração continuada deveria ser fomentada por todo o país, uma vez que acrescentaria valor aos grupos de trabalho.
É essencial também a colaboração das Instituições Particulares de Solidariedade Social na aplicação dos projetos propostos pelas Bibliotecas Públicas. São os técnicos de cada instituição que melhor conhecem os seus utentes e que melhor poderão colaborar na fase de identificação e registo das características de cada um dos participantes dos grupos. Estamos a referir-nos a eventuais dificuldades de visão, ou audição, ou ainda algum problema ao nível da compreensão da linguagem. Também a identificação das necessidades emocionais dos membros dos grupos é importante, para que o bibliotecário possa posteriormente fazer uma seleção apropriada dos textos a utilizar nas sessões, a fim de que exista um perfeito ajuste entre as obras utilizadas e as inquietações pessoais dos participantes.
É, pois, crucial que a interdisciplinaridade com parceiros nas áreas da saúde, educação e ação social seja uma realidade e não só uma intenção.
Deveriam igualmente ser tomadas medidas concretas de difusão dos benefícios e das particularidades da Biblioterapia por todo o país, para que esta prática fosse mais conhecida e consequentemente aceite como uma mais valia nos serviços prestados à comunidade pelas bibliotecas públicas. Uma vez compreendida e aceite, a Biblioterapia justificará a mobilização de recursos humanos e económicos por parte dos agentes culturais e será acolhida e desejada pelas instituições de apoio a idosos que poderão vir a beneficiar destas atividades.
A aplicação da Biblioterapia a idosos tem particularidades face à aplicação junto de outros públicos que devem ser tidas em conta. Na verdade, muitos idosos não conseguem ler por dificuldades ao nível da visão, porque não criaram hábitos de leitura na juventude, porque atingiram um estado no qual a leitura implica uma capacidade de concentração maior do que aquela que conseguem atingir, ou simplesmente porque nunca aprenderam a ler.
Para muitos idosos institucionalizados, uma sessão em grupo, na qual um biblioterapeuta lê em voz alta textos propositadamente escolhidos é a única forma de vivenciar os benefícios da leitura.
Ângela Maria Lima Ratton(3) apresentou, em 1975, catorze benefícios, dos quais a seguir destacamos os que particularmente estão relacionados com a aplicação da Biblioterapia a idosos: a possibilidade de autoconhecimento e de sentir experiências em segurança, sem a necessidade de efetivamente passar por elas; a compreensão dos problemas sociais, levando a uma mais fácil adaptação; a transposição sem mobilidade no espaço para ambientes diferentes; a amplitude de visão através da comparação de pontos de vista alheios; o aumento da autoestima e consequente diminuição da timidez; a compreensão de problemas difíceis de serem formulados e consciencializados pelo próprio indivíduo, que passa a reconhecê-los através do outro; o desenvolvimento de atitudes sociais desejáveis, facilitadas pela identificação com personagens; a ampliação da capacidade de comunicação pelo enriquecimento do vocabulário e pela fomentação do diálogo; e finalmente, a satisfação de necessidades estéticas, intelectuais e emocionais, com o consequente decréscimo da frustração e da ansiedade.
Ora, os comprovados benefícios desta prática levam-nos a crer que será positivo que o estudo e a aplicação da Biblioterapia possam vir a ser introduzidos nos cursos superiores de Ação Social e Psicologia, pelo menos como disciplina opcional. Outra hipótese será a implementação de ações de formação sobre Biblioterapia nos cursos de Ação Profissional na área da Geriatria e do Apoio a Idosos.
Consideramos também muito importante que sejam criadas condições que permitam aos profissionais da Documentação investir na recolha e divulgação material literário passível de ser utilizado em Biblioterapia, criando um acervo de histórias e poemas que façam parte da Cultura Portuguesa e possam dar suporte à terapia através da leitura, nas suas diferentes utilizações. Organizado este acervo, será pertinente desenvolver um repositório onde os profissionais interessados na área da Biblioterapia possam encontrar modelos de aplicação do material literário recolhido, com estratégias concertadas e dirigidas ao público idoso, que tenham em conta as particularidades antropológicas, culturais e sociais dos portugueses.
Concluindo, é fundamental que os bibliotecários públicos, em estreita colaboração com as IPSS’s, organizem e implementem mais projetos de Biblioterapia junto da população sénior, que auxiliem na manutenção da resiliência psicológica dos indivíduos na 3.ª idade, particularmente daqueles que vivem em instituições de apoio a idosos, ajudando a que estes se sintam parte da sociedade, como um todo e não como uma fração segregada da população. Acreditamos que, através da Biblioterapia, é possível adotar medidas preventivas de controlo e de redução do impacto negativo das perdas que ocorrem no indivíduo na sequência do processo de envelhecimento e aumentar o impacto positivo dos ganhos que esse processo também traz.
Numa sociedade justa e atenta, o aumento da qualidade de vida dos mais velhos é e será, cada vez mais, uma conquista valiosa para todos.
(2) FERREIRA, Carmen Zita Honório Santos – Biblioterapia aplicada a idosos: Um novo desafio para as Bibliotecas Públicas Portuguesas [Em linha] Lisboa : Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2013. 138 f. Dissertação de Mestrado [Consult. 01 agosto 2015]. Disponível em http://www.rcaap.pt/detail.jsp?id=oai:recil.grupolusofona.pt:10437/4940
(3) RATTON, Ângela Maria Lima – Biblioterapia. In: Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG. [Em linha] v. 4, n.º 2 (Set. 1975), p. 202. [Consult. 19 fevereiro 2013]. Disponível em download.php?dd0=16049