Diz o actual Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação que a política de cooperação para o desenvolvimento é uma política de Estado. Não o disse à mesa com cerveja e tremoços mas perante a Comissão de Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas da Assembleia da República, órgão de soberania a que, segundo a última verificação que fiz, cabe fiscalizar a acção do governo. Ora se fosse política de Estado não estaria sujeita – como está – às vicissitudes dos ciclos eleitorais e das mudanças governamentais. Prevaleceria – e não prevalece – para além e apesar das mudanças dos titulares da pasta da cooperação. Na verdade, o que acontece – e sempre aconteceu – é que a política de cooperação pública depende inteiramente não de um governo, não de um conjunto de ministros, não de um ministro, mas da sensibilidade e capacidade (ou falta delas!) de uma única pessoa: o Secretário de Estados dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação.
As opções políticas para a área da cooperação para o desenvolvimento poderiam, pelo menos, manter as mesmas tendências conforme o partido político do titular da pasta. Contudo, nem esse é o caso. Portugal já teve Secretários de Estados dos Negócios e da Cooperação que tomaram decisões políticas verdadeiramente basilares e fundamentais para o sector e também já teve, do mesmíssimo partido político, outros que nada fizeram ou que se encarregaram de diligentemente desestruturar o sector. A política da Cooperação para o Desenvolvimento não é pois e lamentavelmente política de Estado. É, quando muito, com algumas e honrosas excepções, política de gabinete no pior sentido do termo.
Actualmente a política de cooperação pública encontra-se sem rumo. Não existe uma estratégia pública para a cooperação para o desenvolvimento. Formalmente até existe na medida em que a última (de 2005 que estimava o seu próprio termo de vida para 2009) nunca foi formalmente revogada por instrumento de igual força legal: uma resolução do Conselho de Ministros. Porém, as poucas medidas que alegadamente são tomadas à luz daquela estratégia de 2005, na verdade têm sido tomadas com o farol da PRACE (Programa de Reforma da Administração Central do Estado) e o das Grandes Opções do Plano (GOP) a ditar o rumo. Aquele, o PRACE, com o nobre objectivo de reduzir custos da administração pública, comanda cega e inexoravelmente a extinção de institutos públicos malgrado a eficiência comprovada do seu trabalho. Este, o GOP, veladamente impõe a subordinação da cooperação para o desenvolvimento à diplomacia económica. Por mais que a internacionalização da economia portuguesa e a captação de investimento estrangeiro sejam imperativos nacionais (e são!) não poderão nem não deverão ser feitos à custa e através da cooperação para o desenvolvimento. A Cooperação para o Desenvolvimento tem princípios, meios e fins próprios que não podem ser penhorados como se de uma jóia velha da falecida avó se tratasse.
Com efeito, alguns desses princípios estão abertamente em causa. Portugal, já através deste governo, assumiu em Busan, Coreia do Sul, em Novembro de 2011, no quarto Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, uma série de compromissos que estão sendo estoicamente ignorados. Disso é exemplo: o princípio do “desligamento da ajuda”, segundo o qual a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) canalizada para países parceiros não pode ser veiculado através de empréstimos condicionados à aquisição de bens e serviços portugueses. Não são conhecidos os números actuais. Todavia, se no final de 2010, 48,3% da APD era “ligada” e ainda não estava subordinada à diplomacia económica, não será precipitação concluir que esta percentagem aumentou, aliás contrariando as recomendações do CAD/OCDE.
Outro exemplo de princípio assumido como compromisso que está claramente em violação é o da previsibilidade, segundo o qual as intenções da APD devem ser públicas e publicitadas com clareza e antecedência de modo a que todas as partes interessadas (desde os outros doadores aos destinatários dessa ajuda, passando por todos quantos participarão directa ou indirectamente na sua concretização) possam programar e organizarem-se para optimizarem (no seu papel) os resultados pretendidos e poderem facilitar o cumprimento nomeadamente de outros princípios da eficácia da ajuda que são o do alinhamento (das intenções dos doadores com as politicas, instrumentos, condições dos destinatários) e o da harmonização (entre intenções de diferentes doadores).
Ainda outro princípio digno de se destacar entre aqueles que foram assumidos por Portugal e não está a ser cumprido (e apenas atendo-me aos princípios da eficácia da ajuda) é o princípio segundo o qual as organizações da sociedade civil do sector devem ser, pelos respectivos Estados, encaradas e apoiadas horizontalmente como parceiros com valor próprio e não como meros prestadores de serviços ou agentes de cooperação. Actualmente, em Portugal, a sociedade civil do sector envolveu todas as partes interessadas e, na falta de soluções públicas, construiu um conjunto de propostas para a cooperação que dirigiu ao governo. Não sabemos o que foi feito delas.
Quanto aos meios, cortes, cortes e mais cortes. A lamentar especialmente a redução na ordem dos 57% o apoio à Sociedade Civil contra apenas 40% na média global de cortes no orçamento geral do novo instituto da Cooperação e 100% do apoio à Plataforma das ONGD, decisão até hoje por fundamentar. Apesar de o lamentarmos, conseguimos compreender. Na verdade, o sector da cooperação não deve ser excepção no corte (quase!) generalizado de apoios que está a ser feito por este país fora. Mais que os cortes lamentamos a total falta de abertura à discussão sobre outras formas de financiar a cooperação e que não oneram em nada o Estado. Estamos em crise. Mas esta não pode servir de alibi para justificar a incompetência e a incapacidade em encontrar outras soluções. Mais grave que o défice económico é o défice de ideias, o défice de honra face aos compromissos assumidos, o défice democrático. Esses défices, sim, é que perpetuarão a crise económica.
Por fim, quanto aos fins da cooperação (permitam-me a aliteração) que estão em causa deixo-vos algumas perguntas: será este rumo (ou falta dele!) adoptado pelo actual governo português vai contribuir, como alegadamente almeja, para o cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, para a realização de um mundo melhor e mais estável, muito em particular nos países lusófonos, caracterizado pelo desenvolvimento económico e social, e pela consolidação e o aprofundamento da paz, da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito? Que país é este em que vivemos em que só há cooperação para o desenvolvimento quando há dinheiro? Quem explica aos 1,4 mil milhões de pessoas no mundo que vivem abaixo do limiar da pobreza que agora não dá, que esperem que possamos dar-nos ao luxo de lhes garantir um mínimo de respeito pela sua dignidade?