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Crianças pobres: um debate carente

Crianças pobres: um debate carente

Historiadora, Universidade Nova de Lisboa, coordenadora de A segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal (Bertrand)

O debate sobre a pobreza em Portugal também é precisado. E relevador da falta de formação e democratização do conhecimento. A pobreza hoje pode estar numa criança obesa e noutra que só joga com computador. “Fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade”, descreveu assim o escritor Steinbeck o que sentia, na longa marcha que percorria na route 66, a família Joad, metáfora de uma geração inteira de homens, mulheres e crianças proletarizadas, que ficaram sem nada durante as políticas recessivas de resposta à maior crise capitalista da história – de 1929. Tinham fome calórica (falta de calorias suficientes), o que deixa as pessoas irritadas e mais tarde catatónicas, não reactivas; tinham fome específica (falta de nutrientes), que têm consequências cerebrais, emocionais, físicas, de diversos tipos. Mas tinham outra fome, que neste monumental romance, As Vinha da Ira, descreve assim – alma, prazer, tranquilidade.

Em Portugal há 47% de pessoas pobres sem as transferências sociais. Com as transferências socias o número atinge cerca de 18%. Há 30% de crianças oficialmente pobres e a quem se atribui o eufemismo de “risco de pobreza”. O Governo debate supostos incentivos à natalidade mas nada diz sobre como ultrapassar a privação dos que já cá estão.

A definição de pobreza é ela mesma pobre e não pode ser aceite de uma forma acrítica pelos estudiosos.

Em primeiro lugar porque, cito a investigadora Maria João Berhan, quando “nos referimos a um adulto que vive com menos de 409 euros mensais (para todas as despesas, habitação, alimentação, transportes, saúde, etc.) é ocultar com palavras a realidade. Viver com menos do que essa quantia mensal não é risco de pobreza, é pobreza certa para 18,7% de portugueses, quase 2 milhões”. É com estes adultos pobres que estão a maioria das crianças pobres, 30% do conjunto das crianças em Portugal. O impacto disto é de uma violência extrema – há 2 anos uma professora a quem dei formação contava-me que levava, para um escola da margem sul, rebuçados porque percebeu que as crianças não tomavam o pequeno-almoço e o açúcar as tiravas do estado de letargia…Isto, não tomar o pequeno-almoço no século XXI, não é pobreza, é miséria extrema, é uma barbárie social.

Em segundo lugar porque a pobreza deve ser medida relativamente com o conjunto da produção em sociedade, ser pobre na idade média e hoje não pode ter as mesmas variáveis – comer, habitar, estar vivo. Se na Idade Média ter acesso a proteína animal, com escassa domínio sobre as pragas agrícolas, por exemplo, era algo que podia não ser garantido a toda população, se, no início do século XX, ser pobre era não ter acesso à escola porque se ia trabalhar com 6, 8, 9 anos, e quem estudava poucos anos era privilegiado, hoje, a medida da pobreza, com uma produtividade do trabalho 5 vezes superior à de 1960, com a tecnologia, técnicas de racionalização produtiva, domínio sobre pragas e doenças, hoje ser-se pobre não é só não ter acesso a necessidades básicas determinadas nos índices de privação. E, consequentemente, o combate à pobreza não pode ser feito no terreno exclusivo da assistência social às necessidades básicas – a alimentação, habitação, saúde, etc.. Ela devia ter como defesa principal o pleno empego e a elevação salarial. Para criar o terreno objectivo que permite sair da pobreza e ter uma medida de civilização. Que medida é essa? Tenho para mim que uma cidade cheia de carros sem espaço para as crianças brincarem é uma cidade pobre; que crianças fechadas dentro de apartamentos a jogar computadores ou ver televisão são crianças pobres a quem foi retirado o direito humano a brincar com os amigos, a pular. Que ser pobre é também ser obeso, comer mal, não ter aprendido paladares e gostos diferentes, não repetitivos; não gostar de ler um livro, não ter apetite pelas palavras – para o qual é necessário ter uma família, amigos ou professores que ensinem o gosto pelas palavras – é expropriar as pessoas do saber colectivo produzido pela humanidade e criar uma clivagem social que dá a poucos o domínio do saber, e o poder, sobre muitos; sair da pobreza é conhecer a poesia e para isso é necessário investir colectivamente em cultura e saber; sair da pobreza é tocar um instrumento, conhecer sons complexos e aceitar que a música erudita não é um privilégio de poucos…

Se um dia fossem contabilizadas as crianças pré-obesas ou obesas (30%), que só conseguem carregar em teclas de computador – preparadas para executar e não para pensar, executar tarefas dirigidas para um mercado de trabalho consentâneo com essas “competências”, as crianças que não criaram laços sociais, capacidade de relação, de gerir amizades, afectos e conflitos; que não sabem pular, correr, brincar…a nossa taxa de pobreza iria sair de uma bitola inaceitável de 30% para um valor muito superior, ainda assim, real.

Março 2, 2015
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