O desafio de pensar a igualdade de género pressupõe um desafio prévio: o de analisar a democracia naquilo que ela tem de mais essencial, isto é, o acesso pleno de todas as pessoas a direitos e garantias fundamentais.
Ainda que Portugal tenha assumido compromissos vários decorrentes da sua participação em diferentes organismos internacionais (e.g., Conselho da Europa, Organização das Nações Unidas) e consagre na sua Constituição o princípio da igualdade (artigo 13.º), sendo tarefa fundamental do Estado, entre outras, a promoção da igualdade entre homens e mulheres (artigo 9.º), a sua efetivação é ainda uma utopia. O vislumbre da igualdade não passa, por isso mesmo, de um vislumbre.
Todos os indicadores internacionais e nacionais apontam para o facto da desigualdade de género persistir na sociedade portuguesa, afetando as mulheres nas várias esferas da sua vida. A título ilustrativo, e de acordo com o World Economic Forum, Portugal apresentava, em 2016, um Global Gender Gap Index de 0.737. Assim, num ranking de 144 países, o país figurava na 31.ª posição, estando a Islândia na 1.ª posição com um índice global de 0.874, ou seja, o mais próximo da igualdade (valor de 1).
Com efeito, a realidade das mulheres portuguesas é marcada por muitas assimetrias que transversalmente as constrangem nos seus direitos e garantias, como evidenciam os elementos que a seguir se expõem.
As mulheres ocupam os lugares cimeiros nos números do desemprego, também por terem sido as mais afetadas pelas medidas de austeridade impostas pela Troika. De acordo com os dados do estudo Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal: as consequências sociais do programa de ajustamento, publicado em 2016 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, as mulheres foram as mais fustigadas pela crise económica. A incidência da pobreza e? claramente superior (mais 5.8 pontos percentuais) no caso dos agregados familiares cujos indivíduos de referência são mulheres. Verifica-se que o ganho me?dio equivalente das mulheres representava, em 2009, 84% do auferido pelos homens, tendo essa proporção descido para 77%, em 2014. O agravamento das diferenc?as salariais entre homens e mulheres no peri?odo entre 2009 e 2014 foi evidente. O ganho me?dio equivalente dos homens sofreu uma reduc?a?o de 1.5%, enquanto o rendimento das mulheres diminuiu 11.5%. As fami?lias com representantes do sexo feminino registaram uma quebra de rendimento de 20%, ao passo que as fami?lias com representantes do sexo masculino registaram um decre?scimo de 8%.
O reconhecimento e a valorização do trabalho realizado por homens e por mulheres e?, a par disso, desigual, facto que reforça o gap salarial. A diferença salarial entre os sexos é, em Portugal, a mais elevada da Europa. As mulheres ganham menos 13% do que os homens.
A conciliação entre a vida familiar e a vida profissional continua a ser uma responsabilidade assumida sobretudo pelas mulheres. Como comprova a investigação levada a cabo em 2016 pelo Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS), as mulheres são aquelas que desempenham, de forma dominante, o papel de primeiras responsáveis pelas tarefas domésticas. Por outro lado, e para agravar a sobrecarga, a jornada de trabalho total das mulheres é, em média, superior à dos homens em 1 hora e 13 minutos.
Para além disso, as mulheres portuguesas estão sub-representadas na política e nos lugares de decisão, apesar do país ter assistido a um incremento de representantes do sexo feminino, nos últimos anos, na Assembleia da República.
As mulheres são as que mais expostas estão à violência no contexto laboral. O estudo Asse?dio sexual e moral no local de trabalho em Portugal, publicado em fevereiro de 2016 pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG, ISCSP – ULisboa), mostra que 14.4% das mulheres ja? sofreu, pelo menos uma vez, asse?dio sexual, tendo os homens passado pela mesma experie?ncia em 8.6% dos casos. 16.7% e 15.9% das mulheres e dos homens respetivamente ja? foram moralmente assediadas/os.
No país, como acontece aliás no resto da Europa, a feminização da pobreza está também associada a um aumento do número de mulheres em situação de sem abrigo, muitas vezes o fim da linha de um processo continuado de marginalização social. Estudos recentes indicam que a violência exercida sobre as mulheres no contexto da família é uma das causas da sua condição de sem abrigo. Na realidade, a violência de género na intimidade é uma das que mais assola o quotidiano das mulheres portuguesas.
Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, em 2016 foram efetuadas 27005 participações de violência doméstica às autoridades policiais portuguesas. 80% das vítimas eram mulheres e 84.3% dos denunciados eram homens. 79.7% das vítimas tinham mais de 25 anos. De 2004 a 2016, e tendo por referência os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), foram vítimas de femicídio em Portugal cerca de 450 mulheres. Em 2016, 22 mulheres foram assassinadas e 31 mulheres foram vítimas de tentativa de femicídio. 64% das mulheres assassinadas foram-no pelos parceiros com quem mantinham ou tinham mantido relações de intimidade.
Os crimes sexuaissão igualmente, na sua generalidade, praticados contra o sexo feminino. O abuso sexual atinge sobretudo as meninas, com predominância do escalão etário entre os 8 e os 13 anos. Em cerca de 40% dos casos os abusadores, na sua maioria homens entre os 41 e os 50 anos, têm uma relação familiar com a vítima.
Os crimes de violação atingem, em 92.7% das situações, mulheres, sendo que em mais de 50% dos casos existe uma relação familiar ou de conhecimento entre a vítima e o violador. Na violência no namoro, a violência sexual é quase que exclusivamente dirigida às raparigas, não a reconhecendo frequentemente, vítimas e agressores, como violência. A cultura da violação e do piropo (este último reconhecido na lei como importunação sexual) continua a ser propagada pelo discurso publicitário, pela linguagem musical ou via outros dispositivos de manutenção e reforço do sexismo, aumentando a vulnerabilidade das mulheres jovens à vitimação sexual.
A mutilação genital feminina e o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual são, na mesma linha, crimes predominantemente cometidos contra as mulheres. O primeiro estudo sobre a prevalência da mutilação genital feminina em Portugal, realizado em 2015 pela Universidade Nova de Lisboa, revelou que 6576 mulheres terão sido submetidas a esta prática. Em 2016, e segundo o Observatório do Tráfico de Seres Humanos, foram sinalizadas 81 presumíveis vítimas de sexo feminino por tráfico para fins de exploração sexual, tendo sido sinalizados 141 homens por tráfico para fins de exploração laboral.
Como se depreende das evidências enunciadas, e que não esgotam todos os indicadores de desigualdade de género disponíveis, Portugal está longe de ser um país igual e, nesse sentido, democrático para as mulheres. Se à pertença de género se somarem outras – como a pertença étnica, de orientação sexual, de identidade de género, de nacionalidade, de idade ou de diversidade funcional, só para citar alguns exemplos – as desigualdades a que as mulheres estão sujeitas multiplicam-se.
Um dos 17 objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável é acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas, garantindo assim a efetiva igualdade de género. Aprovados por unanimidade, em 2015, por 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas, entre os quais Portugal, os objetivos definidos visam resolver as necessidades das pessoas, mulheres e homens, oriundas de países desenvolvidos e em desenvolvimento. O caminho será, como tem sido aliás até aqui, longo e difícil. Mas é possível fazê-lo, com mais e melhor educação. Façamos, pois, aquilo que nos compete. Zelar por abril, zelar pela democracia. A igualdade de género não tem que ser uma utopia ou um vislumbre.