No decurso destes tempos de crise tem crescido o interesse das sociedades e organizações pelo tema da economia social. Proliferam os estudos, as investigações e os debates. Multiplicam-se as iniciativas, formais e informais, mobilizando autoridades e instituições, a todos os níveis, buscando delimitar o perímetro e fixar o conceito da economia social.
Todos se interrogam, e nos interrogam, acerca das suas virtualidades e potencial como resposta à crise. Por todos os continentes, regiões e países a economia social, ou economia social e solidária, ou simplesmente economia solidária, ou ainda terceiro setor, ganha notoriedade pública, para além do círculo dos seus indefetíveis defensores, por fidelidade a princípios e valores ou por sinuosas estratégias ao serviço de interesses que a crise do capitalismo colocou no limbo.
Portugal não foge ao movimento geral que faz mover a economia social, e as suas organizações, para o centro das preocupações de autoridades e cidadãos pondo em questão a sua persistente e tolerada subalternidade face aos setores público e privado da economia fazendo lembrar que a Constituição da República Portuguesa, porventura surpreendentemente adiantada, consagra o setor “cooperativo e social” de propriedade dos meios de produção em pé de igualdade com aqueles outros.
A economia social em Portugal, no último ano e meio, ganhou expressão e espessura institucional (com a criação da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social – CASES e do Conselho Nacional para a Economia Social – CNES), legal (com a aprovação da Lei de Bases da Economia Social – LBES) e económica desde já verificável de forma empírica mas, a breve prazo, comprovável pela via estatística aquando da disponibilização da informação produzida pela Conta Satélite da Economia Social (CSES), realizada no âmbito de um protocolo celebrado entre o Instituto Nacional de Estatística (INE) e a CASES.
Quer os que se encontram mais próximos e atentos ao fenómeno da economia social, os protagonistas, sejam dirigentes ou ativistas, quer os que, simplesmente, beneficiam dela, quer os meros espetadores das vicissitudes do processo do seu crescimento e afirmação pública, e o próprio Estado, são potenciais interessados em conhecer melhor esta realidade cuja representação pública é, em regra, difusamente apercebida pelo seu lado associativo mesmo quando produz bens e serviços, através da empresa cooperativa ou mutualista, ou assume um lugar preponderante, na rede de prestação de múltiplos serviços de proximidade, apropriados por toda a comunidade, através de Misericórdias, Fundações, IPSS s e associações.
Para que nos apercebamos deste mundo de desafios estimulantes, vários debates sobre cooperativismo e economia social têm-se sucedido em todo o mundo. Assim, nos dias 15 e 16 de março de 2012, inserta nas celebrações do Ano Internacional das Cooperativas 2012, a EURICSE (Centro de estudos ligado à Universidade de Trento) juntou-se à ACI e às três confederações cooperativas italianas mais importantes, para realizar uma conferência sobre ‘Promover a Compreensão das Cooperativas para um Mundo Melhor’.
Estiveram presentes académicos de todo o mundo, tendo o discurso inaugural cabido ao antigo Presidente da Comissão Europeia, e ex-Primeiro-Ministro italiano, Romano Prodi.
Quatro notas soltas que se crê ser interessante compartilhar:
- Há que estar especialmente atento ao surto de documentos originário da Comissão Europeia, surto que afeta o mundo cooperativo e da economia social. Esteve especialmente em foco na Conferência a regulamentação proposta sobre as instituições financeiras, regulamentação que poderá pôr em causa a sobrevivência da banca cooperativa e local na Europa, sendo que em Portugal a questão passa ao lado do grupo Crédito Agrícola (CCA), único banco cooperativo português, que já cumpre os critérios do Banco de Portugal, o que não inibe a necessidade de estudar a criação de outros bancos cooperativos entre nós, como o demonstra a dramática dificuldade de acesso ao crédito das organizações da economia social;
- Também foram feitas bastas referências às empresas sociais, ao empreendedorismo e às PME s, e ao modo como nas comunicações de Bruxelas são tratadas as cooperativas e, em geral, a economia social. Com efeito, se abrirmos uma dessas comunicações e a cotejarmos com uma segunda, o conceito de economia social, ou a integração das empresas sociais dentro da economia social, é diferente de documento para documento;
- Para os académicos, sobretudo os italianos, os atuais princípios cooperativos são demasiadamente vagos, e da sua aplicação pode resultar a inviabilização de novas experiências de tipo cooperativo que se estão a desenvolver em resposta à crise económica e social, experiências do tipo das cooperativas sociais, cooperativas que se não destinam a servir os membros delas, mas sim terceiros, e que a doutrina cooperativa tem tendência a incluir nos chamados híbridos cooperativos;
- Finalmente, chama-se especial atenção para a Declaração final da Conferência. Registem-se dois pontos: quando se diz que não se devem avaliar as cooperativas com base em critérios formatados para as empresas capitalistas; e quando se apela a que se não desmutualizem as cooperativas. As cooperativas exigem que as suas realizações sejam avaliadas por critérios que lhes sejam próprios, e para isso, quer via Contas Satélite, quer diretamente, haverá um urgente trabalho a fazer de conhecimento do real universo cooperativo na Europa. Num exemplo invertido, que aconteceria se a democracia cooperativa fosse critério aplicável na avaliação das empresas capitalistas?
Todas as questões que se debatem nos centros de poder europeu, e global, nos devem interessar, em particular, as que respeitam à definição de conceitos inovadores, como o de empresa social, sem demérito para a inovação, mas com redobrada atenção ao surpreendente interesse, ou talvez não, atribuído aos méritos dos princípios mutualistas, e aos princípios do bem comum, pela empresa capitalista, e seus ideólogos, sem demérito para a história e papel do capitalismo (insubstituível?) no desenvolvimento da humanidade.
De Itália queremos relevar ainda um aspeto. O movimento cooperativo organizou-se tradicionalmente em torno dos principais partidos políticos italianos. Faz precisamente um ano que as três maiores confederações cooperativas (Lega, Confcooperative e AGCI) decidiram criar uma única estrutura para a sua representação internacional, a Aliança das Cooperativas italianas. Ultrapassaram divergências ideológicas porque consideraram que a defesa das cooperativas e do cooperativismo era superior aos interesses de fação.
Que esta lição seja um sinal da necessidade das organizações da economia social portuguesas assumirem que os desafios do futuro só poderão ser encarados, de forma positiva e útil para a comunidade, se o movimento associativo, no seio da economia social, ganhar dimensão, peso e capacidade de coordenação, senão mesmo assumindo uma fórmula confederal.
Como escrevi na abertura deste artigo os tempos de crise estimulam e fazem crescer o interesse das sociedades e organizações pelo tema da economia social, seus princípios e valores, em que avultam os valores da democracia, da liberdade e da intercooperação. Em Portugal não há sinais de abrandamento da parte de qualquer dos poderes de interesse pelo setor e pelo tema em toda a sua extensão e complexidade. Espero não ser excessivamente confiante, quiçá, ingénuo.
No seu conjunto a economia social, em Portugal, é composta por mais de 42 000 organizações, constituindo uma rede, densa e diversificada, implantada ao longo todo o território nacional, constituindo-se como um poderoso movimento que gera emprego e coesão social, criando riqueza e exercendo um papel preponderante, real e potencial, no fomento da integração social e da regeneração de territórios que têm vindo a ser esvaziados de população e de equipamentos.
Há que promover, em simultâneo, o amadurecimento do movimento associativo, aglutinar energias na diversidade da economia social, densificar o debate, estimular a academia, formar os práticos, entrosar os protagonistas criando sinergias entre os mundos do saber e do fazer, abrir à renovação de ideários sem perda na fidelidade a valores e princípios distintivos, em suma, fazer mudança.
Por uma miríade de razões que esta breve nota apenas aflora torna-se necessário e urgente estruturar um debate alargado acerca do papel e futuro da economia social no qual participem os protagonistas das organizações que a integram, audível em toda a sociedade portuguesa, tendo em vista promover o seu reconhecimento a todos os níveis e a sua projeção externa com especial incidência no mundo lusófono.