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Empreendedorismo Social: inovação ou rendição?

Empreendedorismo Social: inovação ou rendição?

Sociólogo/Universidade da Beira Interior (UBI) e CIES-IUL

Muito se tem falado ao longo dos últimos anos sobre empreendedorismo social. Conceito de moda ou prática inovadora de intervenção social, o fenómeno (conceito e prática) do empreendedorismo social mobiliza hoje largos setores da sociedade civil, dá origem a investigações académicas e formações especializadas, a congressos e seminários temáticos, promove a identificação de boas práticas e, inclusive, merece crescente atenção por parte da própria União Europeia. Assim o transparece a Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de setembro de 2015, sobre o Empreendedorismo Social e a Inovação Social na luta contra o desemprego (2014/2236(INI), onde este órgão “Solicita à Comissão e aos Estados-Membros que proponham planos e medidas para melhorar a organização do território, em especial em regiões com limitações naturais ou demográficas permanentes, o que não só ajudará a criar e desenvolver empresas da economia social e solidária e a fomentar a inovação e o empreendedorismo social, como também contribuirá para reforçar a coesão social e territorial na UE e tornará mais fácil superar os desafios demográficos com que a União se confronta”.

Sob a denominação de empreendedorismo social tornou-se consensual a ideia de que nos reportamos a organizações ou iniciativas que, pela produção e/ou transação de bens ou serviços, geram um elevado valor social. Ou seja, que submetem deliberadamente a sua estratégia económica a prioridades sociais e colocam a missão social no centro das suas preocupações. Por sua vez, o empreendedor social é descrito como alguém que combina arrojo económico com missão social. É essa a característica fundamental de alguns empreendedores sociais que se tornaram verdadeiras referências globais neste domínio. Como o caso de Muhammad Yunus (Bangladesh), laureado com o Nobel em 2006 e fundador do Grameen Bank. A sua instituição oferece ativamente microcrédito para milhões de famílias. Outro exemplo é o de Bill Drayton, fundador da Ashoka, identificada como a maior rede mundial de empreendedores sociais e que hoje apoia quase 3000 “Ashoka Fellows” em 70 países. É também o autor de uma frase que se tornou célebre neste meio, a de que “o empreendedor social não é o que dá o peixe, nem ensina a pescar; é aquele que não descansará enquanto não revolucionar a indústria da pesca”.  Ou ainda de Cybele Amado (Brasil), que em 1996 criou o Programa de Desenvolvimento e Auxílio ao Professor. Ao deparar-se com o alto índice de analfabetismo e abandono escolar por parte dos alunos de Palmeiras, no distrito rural da Bahia, assumiu o objetivo de contribuir para melhorar a qualidade da educação pública, por meio do apoio à formação de educadores e gestores educacionais. O seu projeto reduziu até 80% o abandono escolar.

Fora dessa base comum, a agregação de outras características ou delimitações tem dado origem a múltiplas interpretações, que variam segundo os seus autores e os contextos em que são pronunciadas. Apenas para citar um exemplo, deveremos estender o epíteto de empreendedor social a Mark Zukerberg ou a Bill Gates, como alguns já têm defendido (1) ? Zuckerberg, fundador da rede social Facebook, afirmava em 2012, numa carta aberta dirigida a potenciais investidores, que “Facebook não foi originalmente criada para ser uma companhia. Foi construída para concretizar uma missão social – a de tornar o mundo mais aberto e conectado”. E mais adiante assegurava que “nós não construímos serviços para ganhar dinheiro, nós fazemos dinheiro para construir melhores serviços”. Pesem embora tais declarações de intenção, não julgo todavia defensável que tais empreendedores (ou empresários) possam ser considerados como empreendedores sociais.

Nos países latinos (Espanha, França, Itália e Portugal) mas também na Bélgica ou Alemanha, a emergência do empreendedorismo social confronta-se com uma realidade que lhe é anterior, e que diz respeito à existência de uma forte tradição em torno da economia social e solidária (ESS). O cenário que se propõe ocupar e o tipo de respostas que preconiza para problemas como a contração da ação providencial do Estado, a redução dos apoios públicos, a natureza endémica dos problemas do desemprego e da pobreza, ou, ainda, a emergência de novas necessidades sociais ligadas ao aumento da esperança de vida, à incidência de condições crónicas ou à desigualdade social, coincidem em muitos traços com o modelo de intervenção social que a ESS reivindica para si própria. Pelo que a delimitação de fronteiras entre estas duas realidades se tornou um ponto de inevitável questionamento e tem influenciado diretamente o debate sobre este novel conceito.

Em Portugal e nas várias iniciativas e encontros em que tenho tomado parte como participante ou palestrante, por força do meu interesse pessoal e do envolvimento profissional enquanto diretor de um curso de 2º Ciclo em Empreendedorismo Inovação Social na Universidade da Beira Interior (UBI), constato que a discussão sobre o empreendedorismo social, ainda recente, enfrenta dois tipos de pressão. Por um lado, e à semelhança do que ocorre por exemplo em França, muitas são as vozes oriundas da mencionada economia social e solidária (ou com afinidades ao seu modelo) que rejeitam qualquer aproximação ao conceito de empreendedorismo social e o acusam de poder colocar em causa o valor político e alternativo de que aquela se reivindica. Como diz Roque Amaro, entramos nos domínios da “maldita” gestão. Por outro, e não menos interferente, é a adesão acrítica a esta novidade, e mesmo a sua tentativa de colonização, por parte de sectores que tomam a ideia do empreendedorismo como a solução para os problemas de desenvolvimento do país. Em particular, por parte de uma geração de “novos empreendedores sociais” que, recém-saídos das escolas de gestão e amiúde sem prévia ligação às organizações sociais implantadas, tendem a negligenciar a história e a experiência acumulada no que concerne à intervenção social em Portugal. Qualquer uma destas posições pode limitar o alcance do debate e na prática, podemos dizê-lo com conhecimento de causa, tem inibido um maior diálogo entre as partes.

Se é claro para todos que o empreendedorismo social não pode ser confundível com a economia social e solidária, a questão que se coloca é a da relação e compatibilidade possíveis entre estes dois movimentos. E dos benefícios mútuos que se podem extrair da maior proximidade, convergindo-se para uma síntese do melhor de cada uma das práticas.

Em França, onde o debate surge mais avançado, a posição de Jean-François Draperi é inequívoca: não existe compatibilidade possível! O seu argumento principal é o de que o empreendedorismo social não contribui para a produção de uma economia a-capitalista mas ao invés prolonga, via filantropia e empréstimo, a colonização da economia pelas empresas capitalistas. Encarando a pobreza e o ambiente como um mercado, o empreendedorismo social terá por objetivo incluir as populações pobres no mercado mundial das mercadorias. E favorecer muitas vezes o endividamento e a dependência, precisamente através da filantropia e do empréstimo (nomeadamente pelo microcrédito).

Todavia, é o mesmo autor quem sublinha que “o movimento empreendido pelo empreendedorismo social é suscetível de oferecer aos atores da economia social uma vitrina que as organizações da ESS foram até agora incapazes de produzir” (2010: 36). É forçoso reconhecer que as novas experiências do empreendedorismo social (e as estratégias de mainstreaming e marketing social a ela associadas) muito têm contribuído nos últimos anos para promover o que Boaventura Sousa Santos e outros chamam de “sociologia das ausências”. Esperando estar a traduzir bem o conceito, uma vez que ele me é completamente novo, urge inverter a subtração ao mundo de práticas e conhecimentos que ultrapassam o convencional e o hegemónico. Assim como contrariar a contração do presente e o desperdício da experiência (Hespanha e Santos, 2011: 34). E, nessa matéria, as iniciativas do empreendedorismo social têm sabido bem lidar com os circuitos na nova informação (internet, media online, redes sociais), desocultando práticas e organizações que até agora se revelavam invisíveis à opinião pública, mas também a muita investigação.

Mas não é só a estratégia de visibilidade que deve merecer a nossa atenção. Outros méritos (ou ensinamentos) devem, assim julgamos, ser olhados com cuidado: a) uma forte aposta em estratégias de inovação social, nomeadamente ao nível de produtos e ideias, e de metodologias de trabalho; b) a relação com a ideia de risco e a sua apropriação como fator que impulsiona a ação das organizações; c) gestão estratégica e por projetos; d) aposta na “hibridação de recursos”, na linha do que Jean-Louis Laville já havia defendido para a economia solidária, designadamente pela cooptação de fundos do mecenato e apoios das empresas; e) obrigações de impacto social e de indexação do investimento a resultados, bem como da replicação das soluções em novos contextos.

Será que precisamos desse novo conceito e prática que nos aporta a ideia de empreendedorismo social? Poderei admitir que não. Mas é-me mais difícil aceitar que a ESS, e o movimento do desenvolvimento local, não retirem ensinamentos úteis para a sua própria prática das dinâmicas de inovação transportadas por aquele conceito. Mas a ESS também um papel importante neste diálogo, o de incentivar o empreendedorismo social a que não se centre, como amiúde tem ocorrido, apenas sobre as práticas empresariais (criação de valor social, inovação, competitividade, impacto social e ambiental), em detrimento da renovação democrática. O que levará à sua inscrição na economia capitalista tradicional, sem que lhe seja uma alternativa e um verdadeiro motor de transformação social. Tal como afirma Guy Roustang (2003), os termos “economia social e solidária” e “empreendedorismo social” podem levar a pensar que o acento deve ser posto sobre o económico, quando o essencial é da ordem do político, da capacidade dada a cada cidadã(o) para participar, ainda que modestamente, da evolução da sociedade e da construção do seu ambiente.

Draperi, J. F. (2010), “L’entrepreneuriat social: du marché public au public marché”, RECMA Revue internationale d’économie sociale, 316, 18-40.

Hespanha, P. e Santos, A. M. (orgs.) (2011), Economia Solidária: questões teóricas e epistemológicas, Coimbra, Almedina.

Roustang, G. (2003), “Volatilité ou pérennité des innovations sociales de l’économie solidaire”, 3ème Rencontres du Réseau Interuniversitaire d’Economie Sociale et Solidaire,Toulouse Le Mirail, 5(03), 10pp.

Janeiro 30, 2016
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