Quando nasci, em 1995, o prognóstico era ótimo. Os meus pais tinham reunido todas as condições para me darem tudo (o que pudessem) e eu, como terceira filha, tinha tudo
reunido para lhes dar o que eles sempre quiseram: que eu conseguisse tudo. Mas algo aconteceu que fez com que o prognóstico mudasse e até hoje não sei o que foi.
Vi o analógico passar para digital. E isso era tão promissor quanto o meu futuro. As oportunidades daí advindas, o avanço tecnológico, na educação, na saúde, … . Foi tão
rápido que aprendi a fazer contas de cabeça na primária e hoje em dia tenho de pegar numa calculadora para ter a certeza de quanto é 2 + 3. Foi tão rápido que, de repente,
deixei de ter um leitor de cassetes para ter um MP4. Foi tão rápido que não consegui aproveitar. Como dizia o Sérgio Godinho, “soube-me a tanto, portanto, soube-me a pouco”.
E soube a tanto porque os meus pais me disseram, desde que me lembro, que se eu estudasse muito e me esforçasse para ir além das minhas capacidades, chegaria
onde quisesse. Seria a melhor – o que não era mais do que a minha obrigação. “Vocês hoje em dia têm acesso a tudo, é só ir à internet!”. E, assim, a minha geração cresceu
com a obrigação de ser a melhor. A mais inteligente, a mais formada, a mais aware e, ultimamente, a mais realizada e feliz. Já disse que o prognóstico mudou?
Sempre fiz tudo como mandam nos livros. Estudei, esforcei-me imenso. Era boa aluna, “mas muito faladora”. Nunca uma classificação me custou tanto como aquela
primeira negativa num teste surpresa de matemática, no 6º ano: “falhei, nunca vou ser ninguém”. Os meus pais só vão saber desta negativa se lerem este texto. É uma
boa metáfora para a vida, não é? Que nos traz surpresas desagradáveis e nos deixa sozinhos a resolvê-las. E eu até conseguia. Portanto, cresci numa utopia: consegues
e podes ser o que quiseres. Vá, talvez não tenha sido uma utopia no verdadeiro sentido da palavra, mas também não fui avisada que, para chegar onde eu queria,
tinha de tomar tantas decisões importantes e definitivas, sem conhecimentos para tal. Ninguém me disse que, quando eu chegasse onde queria, ia continuar sem me
sentir realizada, porque nunca é suficiente. Ninguém me contou como era o mundo dos adultos. Sou a única que pensava que era mais fácil?
Fui para o Curso de Línguas e Humanidades, no secundário, porque queria ser escritora. E fui tão bem preparada, porque a minha obrigação era conseguir tudo o que quisesse,
que pensava que acabava a Universidade e era logo escritora. Agora tem a sua piada irónica, mas quando me apercebi deste facto, não achei muito engraçado. Decidi que
ia acabar o 12º neste Curso e depois ficava um ano a estudar Biologia e Geologia, para poder fazer o exame e entrar em Enfermagem. Nunca nada estava bem ou era suficiente: “falhei”, porque nenhum Curso de Línguas dava “emprego bom” e fazer Biologia foi “perder um ano da minha vida”. Mas fiz Biologia e fui para Enfermagem.
Tirei o Curso de Licenciatura, nunca reprovei a nenhuma cadeira e terminei com média de 15. Péssimo! Horrível! Falhei! Tinham-me dito que ia ser a melhor e só tive 15? Que vergonha. Onde é que vou arranjar emprego na área com esta média? A melhor ideia é mesmo seguir já para Mestrado, não perder tempo nem andamento. Conseguirei tudo o que quero! Licenciatura terminada, Mestrado em curso. “Lamento, Senhora Enfermeira, mas não lhe podemos dar emprego porque está a tirar Mestrado e depois vem pedir dias e não podemos dar”. Desculpe? “Lamento, Senhora Enfermeira, mas, com o Mestrado, parece-me que a sua disponibilidade seria reduzida para o local de trabalho”. Esperem, não era suposto ser bom eu estar a investir na minha formação? “Lamento, Senhora Enfermeira, mas não nos dá jeito”.
Licenciada, a tirar o Mestrado em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica. Futuro ideal: trabalho especializado numa instituição. Realidade: arranjei um part-time numa loja de roupa. Porque era demasiado qualificada, “ia pedir dinheiro e condições melhores”, o que é considerado, pela maioria das entidades patronais, como exigência e não como justiça. E a isto chama-se precariedade, fragilidade, insegurança. Não era este o prognóstico, lembram-se?
Depois de entregar mais de 50 currículos e cartas de motivação, de gastar dezenas de euros em combustível para os entregar em mão e de ser recusada entrevista após entrevista, por estar a tirar o Mestrado, contactaram-me às 23H de um dia a pedir que começasse a trabalhar num lar no dia a seguir. “Precisamos mesmo de alguém o mais rápido possível”. Ainda assim, o desespero deles não era maior do que o meu. Somos tão bem informados acerca do mercado de trabalho que, em todo o tempo que trabalhei nesse local, não recebi subsídios de férias e nem sabia que estava algo mal. Precário.
Decidi que não ia trabalhar mais em lares: eu merecia melhores condições. Disseram-me que ia ser a melhor e conseguir tudo! Ups… Olá, COVID! Lá fui eu para a trincheira de Lisboa. Fui educada para ajudar os outros e instruída para atuar quando as pessoas precisam. Dei o corpo às balas e a alma ao destino. Praticamente não vi os meus entes queridos durante 2 meses. Precário. Voltei para a minha cidade e comecei a trabalhar no Hospital. Contrato de 4 meses para COVID: precário, mas está bem, são tempos difíceis. Seguem-se mais dois contratos de 4 meses para COVID. Mas isto já não estava a acalmar? Já estava na altura de deixar de utilizar esse pretexto para fazer contratos precários. Ok, então toma lá um contrato de substituição durante os próximos 2 anos. Contenta-te por teres trabalho e a sorte de até encontrares lá pessoas-casa, porque de resto podes contar com pouco mais do que o salário mínimo nacional e poucas ou nenhumas progressões na carreira.
“A vossa geração não sabe é poupar. Gastam tudo em saídas à noite, drogas e álcool”. Onde é que sobra dinheiro para isso, depois de pagar tudo (inflacionado, ainda por cima): é a comida, a luz, a água, o gás, a gasolina, as peças quando o carro tem problemas, as despesas de saúde, as despesas académicas, …? Se calhar, mais vale mesmo sair do país e ir pagar impostos para outro lado, que me valorize mais e à minha formação. Como…quantos já o fizeram? 2 milhões de portugueses?
Após tanto esforço, tanto gasto de energia… O prognóstico a esta altura, para a minha geração, não seria, pelo menos, ter uma casa, um carro e um emprego estável, com sentimento de realização? Talvez, mas mudou. O que eu tinha era o trabalho a tempo inteiro e dois part-times, porque eu vou ser a melhor, vou conseguir tudo e, mais importante ainda, vou ter dinheiro para lazer. Não posso ter uma folga, porque é um dia inteiro em que podia estar a fazer dinheiro (para aproveitar não sei quando). Não posso dormir nos turnos da noite, porque é tempo que posso aproveitar para fazer trabalhos académicos. Não posso sair com os meus amigos, porque tenho de descansar o que não dormi de noite. Não posso aproveitar a vida, porque não posso gastar dinheiro.
Após 27 anos a investir em mim, só tenho como retorno um Síndrome de Burnout e uns míseros 900€ na conta poupança. Não tenho casa própria, preciso de arrendar. Não posso pedir empréstimos, porque estou a contrato de substituição. Não consigo poupar para a entrada de uma casa, porque a inflação não acontece nos salários. Não vou para lado nenhum de férias e, ainda assim, ando para comprar um sofá há mais de meio ano. Não posso gastar o que tenho na poupança, porque pode ser preciso para uma emergência.
Vivemos com medo de ser felizes, porque satisfazermo-nos nesse momento pode significar sofrermos num futuro. Tudo nos leva a acreditar que é impossível vir algo bom sem ter algo mau associado. Não era este o prognóstico quando nasci. Eu podia ser o que queria, porque tinha tudo ao meu alcance. Ia conseguir tudo! Esqueceram-se de me informar que esse “tudo” não incluía saúde mental.
E assim segue a minha geração e as seguintes, a viver no limbo, com medo de cair para o lado errado sem querer.
Eu pensava que nunca ia sequer conhecer o que significa o limbo.
O prognóstico mudou e ainda hoje não sei o que é que se passou.