O presente artigo faz referencia ao estudo “Expectativa dos e das adolescentes relativas ao futuro: Influência dos Estereótipos de Género” que constitui a minha Tese de Mestrado em Estudos da Criança, na área de especialização em Intervenção Psicossocial com Crianças, Jovens e Famílias. O estudo foi feito sob a orientação das Professoras Doutoras María Victoria Carrera Fernández (Universidade de Vigo, Faculdade de Ciências da Educação de Ourense, Espanha) e Maria Teresa Machado Vilaça (Instituto de Educação, Universidade do Minho, Braga, Portugal).
Os estudos acerca dos estereótipos de género em Portugal são escassos, e por isso despoletaram um superior interesse por esta temática, que é extremamente importante para a comunidade científica e a vida do quotidiano. Esta é também uma temática de especial relevância, uma vez que vivemos numa sociedade patriarcal, de caráter sexista, onde as mulheres vivem numa situação de desigualdade e vulnerabilidade face aos homens. Assim, por exemplo, torna-se inexplicável o facto de vivermos numa sociedade em que as mulheres representam a maioria e ainda assim, não as observamos a ocuparem cargos de poder e de chefia, mesmo que possuam carreiras de excelência.
Este fenómeno é causado pelos papéis e estereótipos de género, que são crenças socialmente compartilhadas sobre a forma como se devem comportar os homens e as mulheres em função do seu sexo ou marca corporal, e são transmitidas através do processo de socialização diferencial de género.
Este processo de socialização diferencial de género, ou processo de criação da identidade de género, inicia-se com o nosso nascimento, quando através da identificação do sexo nos categorizam de meninos ou meninas. No entanto, parece-me insuficiente esta classificação, uma vez que existem seres intersexuados que não se encaixam no binário homem-mulher e por isso são forçados/as a uma das duas identidades possíveis. Desta forma, ao existir ambiguidade na classificação à nascença, faz-me acreditar que a classificação de sexo, como algo biológico, não está totalmente correta, uma vez que a dualidade homem e mulher pode ser construída.
Assim, com base na marca corporal, homem ou mulher, as meninas e os meninos serão socializados de forma diferente: os meninos na instrumentalidade, assumindo-se como masculinos, com características como a autonomia –ser para si-, a independência ou agressividade, associadas ao âmbito público; e as meninas na expressividade, assumindo-se como femininas, com características como a heteronomia –ser para o/a outro/a-, a dependência e a empatia, associadas ao âmbito privado e doméstico.
De forma sintética o sexo é a identificação de homem e mulher e o género é a forma como cada homem e mulher se deve comportar, tendo em conta as normas sociais relativas ao género, formando assim a sua identidade de género, que se apresenta como natural, mas é construída socialmente.
E desta forma é criada a identidade de género, ou seja, nascesse com um sexo ou uma marca corporal, mas a sociedade dita quais os comportamentos e atividades que meninos ou meninas estão sujeitos a desenvolverem para se assumirem como masculinos ou femininos. Ou seja, sexo e género são duas dimensões relacionadas, influenciadas socialmente e assentam na dicotomia de dois sexos homem/mulher e dois géneros masculino/ feminino, que devem ser congruentes e complementariamente heterossexuais.
Posso assim dizer, de forma absoluta que a identidade de género é um processo de construção em que participam vários agentes de socialização, tais como a família, a escola e os meios de comunicação, por tal facto, não podemos assumir o género como um conceito universal, uma vez que a sua definição varia de cultura para cultura, evoluí no tempo, e depende do que cada sociedade considera como papel a assumir pela mulher e pelo homem. Assim mesmo, é importante destacar que este processo de socialização de género não só dá lugar a identidades de género diferentes, como também desiguais e hierarquizadas, onde a mulher está subordinada ao homem, constituindo-se, como assinalou Simone de Beauvoir, “o segundo sexo”.
Sendo consciente deste fenómeno e em resposta aos meus interesses como investigadora e a nível pessoal, decidi realizar este estudo, desejando aprofundar este fenómeno e sensibilizar toda a comunidade para a mudança de mentalidades e de visão, fomentando a igualdade nas relações através da mudança de valores e crenças de forma a atingir a igualdade nos mais diversos contextos.
O objetivo geral do estudo foi analisar as expectativas dos e das adolescentes perante o futuro que os/as aguardava, em função do seu género e da influência das normas e estereótipos de género promovidos pelos diferentes agentes de socialização, atendendo a diferentes âmbitos e dimensões: pessoal, familiar e laboral. O estudo contemplou uma abordagem real à forma como as/os adolescentes percecionavam o futuro nas mais diversas áreas, uma vez que as questão estavam perspetivadas para quando eles/as tivessem 30 anos de idade, e à forma como estas crianças estavam a ser orientadas na sua adolescência no que se refere às questões de género e aos estereótipos. Foi possível observar diferentes expectativas futuras, uma vez que existiam diferentes processos de socialização, feitos em função do género.
Os objetivos específicos do trabalho foram a análise da reprodução e transgressão de estereótipos e papéis de género nos seus projetos laborais, a identificação de continuidades e resistências á reprodução de papéis e estereótipos de género no âmbito familiar e doméstico e ainda, conhecer e aprofundar a reprodução de estereótipos e papéis de género expressivos e instrumentais no seu âmbito pessoal, assim como perceção de si mesmos/as.
No estudo participaram de forma voluntária 53 adolescentes, com idades compreendidas entre os 10 e os 16 anos, dos quais 16 eram meninos e 37 meninas. Participaram no estudo 4 entidades diferentes, pertencentes ao concelho de Valongo, participou um grupo de escuteiros, uma escola de dança, uma academia de taekwondo, e ainda uma sala de estudo, o que possibilitou a criação de 7 grupos de discussão, em que participaram pelo menos 7 meninas e/ou meninos.
Tratou-se de um estudo qualitativo, através da realização de grupos de discussão, em que os/as participantes foram os próprios protagonistas. Utilizou-se um guião de preguntas chave que orientou a discussão em cada um dos grupos. As conversações, que foram anónimas e confidencias, foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas integralmente e literalmente.
A categorização primária da análise dos dados foi organizada em torno de cinco categorias principais, tomando como critério de partida as questões que orientaram o desenvolvimento das sessões e que constituíram os temas chaves da discussão: i) âmbito privado: familiar e doméstico; ii) âmbito profissional; iii) o conflito trabalho-família; iv) âmbito pessoal e lazer; e v) autoperceção e género.
Os resultados obtidos com a aplicação do meu estudo, em relação ao âmbito privado, e mais concretamente relativamente ao âmbito familiar, mostram que as meninas identificam-se mais que os meninos com a ideia de terem filhos/as e estarem casadas, considerando que estas são dimensões inseparáveis. São elas em maior número, ainda que ambos os sexos se tenham manifestado, as responsáveis por uma socialização diferencial, contribuindo para uma sociedade regida pela desigualdade de género uma vez que mostraram interesse em educar de acordo com o sexo da criança, fomentando a continuação dos estereótipos de género. Por outro lado, elas mostraram vontade em se tornarem independentes, afirmando que não é necessário terem um parceiro para conseguirem levar as suas vidas, e muitas delas mostraram ter foco na vida profissional, colocando em manifesto os papéis de género femininos, uma vez que estes estão a alterar-se, modernizando-se. Consegui observar que para ambos os sexos a coabitação não tem que ocorrer só posteriormente a um casamento, ambos preferem primeiro viverem juntos e só depois casarem, alterando-se os modelos estereotipados da sociedade, preocupando-se primeiramente com o seu bem-estar.
Ainda nesta linha, mas no que respeita ao âmbito doméstico, este é um âmbito em que existe grande reprodução de papéis e estereótipos de género fomentando a desigualdade, logo os avanços foram muito pouco significativos. Pude observar que eles continuam a ver a mulher como alguém que é subordinada ao trabalho doméstico e por isso, alguém que pertence ao âmbito privado. Eles continuam a assumir-se como os responsáveis pelo sustento familiar, não aceitando uma divisão completa das tarefas.
Na categoria âmbito profissional, notei uma transgressão dos estereótipos por parte dos adolescentes, tal facto veio contrariar alguns estudos que afirmam que são elas quem mais transgrediam os papéis e estereótipos de género. Ainda assim, ambos reproduzem em grande medida os papéis socialmente adequados ao seu género.
Na categoria conflito trabalho família, elas foram as únicas que falaram na possibilidade de uma harmonia entre as duas dimensões, visto que vivem com o estereótipo de que possuem um segundo trabalho, o doméstico. Foram elas que também falaram muito da importância de um trabalho, o que mostra o desejo da libertação das tarefas domésticas e por isso, de uma independência. Ficou claro, no estudo, que os meninos valorizam mais a família que o trabalho e que elas começam a valorizar mais a carreira profissional, há então neste âmbito pequenos avanços.
Na categoria âmbito pessoal e lazer, que se referia à realização de atividades expressivas e instrumentais, existiu claramente uma reprodução de estereótipos e papéis de género, quer por parte dos meninos quer por parte das meninas. As meninas ocupavam-se com atividades como estar com a família, ver televisão enquanto eles mencionaram atividades como jogar futebol, ir ao café. No entanto verificou-se que os meninos, uma vez mais, manifestarem o interesse em desempenharem atividades tradicionalmente designadas do sexo feminino em maior medida que as meninas, ou seja, elas não manifestaram os seus interesses em desempenhar atividades tradicionalmente consideradas masculinas, mostraram assim, que eles são mais expressivos que elas instrumentais.
Já na categoria autoperceção e género, os meninos descreveram-se com características instrumentais, tradicionalmente consideradas do sexo masculino, nomeadamente impaciência, impulsividade e agressividade; e elas com características expressivas, tradicionalmente consideradas do sexo feminino tais como a simpatia, a sinceridade e meiguice, ainda que se tenham descrito em maior medida que os meninos como expressivo-instrumentais, o que nos permite falar de uma maior abertura aos papéis, neste âmbito por parte das meninas.
Com os resultados do trabalho, aquilo que pude observar é que é necessário que se invista fortemente em programas formativos nos diferentes âmbitos educativos, ou seja no âmbito formal, como a escola, e informal como a família, e ainda os meios não formais, nomeadamente municípios, orientados para a eliminação dos estereótipos e papéis de género e a promoção de atitudes igualitárias.
Existe a necessidade que este tema se mantenha na atualidade, e que se ataque fortemente no seu estudo, de forma, a que num futuro muito próximo se possa viver numa sociedade justa e igual, não havendo distinção de atividades, tarefas, profissões, tendo em conta o sexo com que se nasce, e por isso, reproduzindo os papéis que a sociedade aceita como sendo os normais.
O investimento tem que surgir de forma imediata na formação de educadores/as e professores/as para que possam adquirir habilidades e conhecimentos para trabalharem de forma precoce com os/as adolescentes para um tratamento igualitário, fazendo com que o crescimento seja promovido na igualdade. Ora esta formação é indispensável para os/as educadores/as, visto que é no ceio da própria família que se começa a fomentar a desigualdade. Continuando esta socialização diferencial na própria escola. Assim, as escolas, também elas assumem um papel indispensável para a promoção de igualdade, e por isso, devem desde cedo trabalhar este tipo de temas, em vez de se focarem exclusivamente no sucesso escolar, a forma de o fazerem será através da elaboração de programas que trabalhem a diminuição da violência, a aquisição de competências sociais e igualdade de género de forma a promoverem uma cultura isenta de estereótipos. A escola deve por isso assumir um papel socioeducativo, alterando as suas posições e ensinamentos de acordo com as necessidades sociais.
Assim, para que a promoção da igualdade ocorra com sucesso tem que existir uma interligação com as várias entidades, havendo um trabalho coordenado com profissionais de diferentes disciplinas dentro e fora das instituições.
Investindo-se neste tipo de programas e formações, vai possibilitar a existência de igualdade entre homens e mulheres, ou seja, a igualdade de género. Quero com isto dizer, que passaremos a viver numa sociedade em que haverá igualdade de direitos e liberdade, igualdade de oportunidades de participação, e reconhecimento e valorização de mulheres e homens em todos os domínios da sociedade político, económico, laboral, pessoal e familiar.