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Mediação intercultural e intervenção social: prevenção, resolução, tolerância e respeito

Mediação intercultural e intervenção social: prevenção, resolução, tolerância e respeito

ESECS-IPL e CICS.NOVA.IP Leiria

Intervenção preventiva e resolutiva

Se os modelos da prevenção e da resolução são aplicáveis a diversas áreas e contextos, tal como na medicina (preventiva e curativa), a verdade é que quase sempre é no “fim da linha” que se pensa sempre que se fala de cuidados médicos: o médico é esperado para curar, para resolver.

Também relativamente aos domínios da mediação, quase sempre vem ao de cima a dimensão resolutiva de conflitos. É um nome recorrente nos livros, na busca nos motores da internet, etc. como se, primeiro, fosse possível resolver todos os conflitos; segundo como se a vida não fosse, diariamente, feita na interação entre diferentes, diferentes pessoas, grupos, diferentes pontos de vista, etc. havendo concordâncias e identificações e, também, discordâncias, originando pequenas e grandes tensões mas que nem sempre terminam, necessariamente, em conflito.

No contexto escolar, onde temos trabalhado mais estas questões, torna-se cada vez mais evidente o aumento de tensões sociais em consequência da abertura da escola a mais diferenças culturais que, naturalmente, não se identificam com os mesmos projetos, os mesmos ideais, etc. Temos dito, até, abundantemente, que a escola, neste sentido, é um microcosmos da sociedade global e multicultural em que vivemos.

Pelo seu carácter obrigatório e universal, nas sociedades ditas ocidentais, a escola acolhe, de forma prolongada, as crianças e jovens de uma dada classe etária, independentemente do sexo, condição social, origem étnica ou religiosa. Mais do que, porventura, em qualquer outra instituição social, a escola integra todas as diversidades sociais e culturais representadas na sociedade. Nesse espaço social (Sanches, 2009) cruzam-se muitas das questões que hoje emergem nas sociedades de modernidade tardia, das desigualdades sociais às questões de género, da democracia às questões da cidadania e da participação activa dos sujeitos, da integração à inclusão e à exclusão social, da indisciplina à violência, da coexistência das diversidades até à (re)construção das identidades pessoais e culturais (Jares, 2007; Vieira, 2009a e b)” (Vieira, A., 2013: 47).

Entre a paz e o conflito, os dois extremos desse olhar moderno, mas também simples, porque dualista, há processos, muitos processos, tudo o que fica entre os extremos. Basarab Nicolescu, que é uma figura de proa do movimento da transdisciplinaridade para estudar a complexidade, usa uma figura popular que ilustra bem a impossibilidade de reduzir um processo aos extremos dicotómicos, tantas vezes. Pegando na sabedoria popular que diz que “um pau tem sempre dois bicos”, este autor procura explicitar o sentido do terceiro incluído, introduzido pela física quântica e que, de alguma forma, choca com a lógica formal, binária e clássica do terceiro excluído onde se A é A e B é B, não pode haver um terceiro termo que seja ao mesmo tempo A e B. A lógica do terceiro incluído acaba por ser, de alguma forma, a busca da mediação intercultural, quando se procura encontrar um terceiro lugar aceite pelos extremos em tensão/conflito, mas que é um lugar mediado, negociado e nunca fixo. Está sempre móvel entre as duas posições mais extremadas, tipo uma geometria variável. É impossível que um homem

[…] queira, a todo o custo, separar as duas extremidades de um pau. Ele vai cortar o pau e perceber que agora tem, não apenas duas extremidades, mas dois paus. E vai continuar a cortar, cada vez mais nervosamente, o seu pau, porém, embora estes se multipliquem sem parar, é impossível separar as duas extremidades!” (Nicolescu, 2000: 26).

Por isso, também, preferimos falar de gestão de conflitos pois eles não acabam, propriamente. Por isso, enfatizamos e procuramos alertar para uma transformação de olhares e de discursos sempre que se fala de mediação. Por isso alertamos para a necessidade de um olhar e de uma intervenção social atentos a todos os processos de interação, sejam os que ocorrem nos contextos familiares, escolares, comunitários, laborais, jurídicos ou outros, durante e antes do conflito propriamente dito.

O educador social, o assistente social, ou outro trabalhador social, quando trabalham com idosos, ou com toxicodependentes, ou com ex-reclusos que pretendem ressocializar, reeducar, que pretendem ajudar a construir um projeto para que não voltem a cair no mesmo contexto problemático, têm que trabalhar com esse “o outro”. Neste sentido, têm que usar uma prática mediadora entre os sujeitos e culturas:

Ao contrário do médico, do terapeuta ou do juiz, o educador assume na relação o duplo estatuto de alguém que está diretamente implicado e, ao mesmo tempo, impedido de tomar partido ou de dar a solução. Cabe-lhe, sobretudo, escutar e estar atento, criando situações de encontro e de proximidade favoráveis à emergência de respostas pessoais por parte dos educandos, os verdadeiros protagonistas da acção. Para isso, terá de promover relações interpessoais baseadas no princípio ético da distância óptima. Ou seja, uma distância que permita garantir a conjugação equilibrada entre racionalidade, sensibilidade e serenidade” (Carvalho e Baptista, 2004: 93).

A intervenção social, seja mais preventiva e transformativa ou mais resolutiva, pode, e deve, sempre que possível, ter uma prática alimentada pela mediação, quer dizer, pela comunicação, pela negociação e não pela imposição dum único modelo e filosofia de vida. Neste sentido, referimo-nos à mediação enquanto área e conjunto de competências transversais a várias profissões, como uma filosofia hermenêutica, comunicação interpessoal e intercultural, como tradução sistemática de interesses das partes numa interação e por vontade dos implicados. Trata-se, no fundo, como sublinha Torremorell (2008: 85), de

[…] uma tentativa de trabalhar com o outro e não contra o outro, procurando uma via pacífica para enfrentar os conflitos num ambiente de crescimento, aceitação, aprendizagem e respeito mútuo. […] Mas, a partir de uma Concepção mais ampla, consideramos que «a cultura de mediação configura espaços comunicacionais ternários nos quais, com a contribuição da pessoas mediadora, sujeitos agentes geram horizontes simbólicos partilhados»”

Na mediação entre diferentes valores culturais, o trabalhador social emerge como um mediador entre os grupos sociais e as mais diversas instituições públicas e privadas, apoiando-se numa hermenêutica multitópica [diatópica no dizer de BS Santos, 1997] com vista à concretização dos direitos e dos interesses dos grupos e sujeitos em causa na interação. A finalidade do processo de mediação é buscar a autonomia desses grupos e pessoas [empowerment].

Por outro lado, a expressão “resolução de conflitos” reporta-nos, muitas vezes, ao conceito de eliminação dos conflitos. Já a expressão “gestão de conflitos” não pretende acabar com os conflitos (coisa impossível), mas sim resolvê-los. Aqui, a mediação é vista apenas como uma técnica, uma ferramenta utilizada nas relações interpessoais com problemas complexos. Na realidade, na mediação combina-se uma atitude cultural com um manejo de técnicas.

Ao trabalhar com as diversidades, isto é, com outras identidades e alteridades, e ao procurar formas de ajuda à emancipação, a mediação tem vindo a desenvolver-se e a especializar-se, em vários domínios, desde as Ciências Jurídicas, à Gestão, Intervenção Social, Antropologia, Psicologia, Sociologia e a temas transversais aplicados à Educação. Assiste-se, assim, ainda que lentamente, à transformação da ideia hegemónica em que a mediação surge sempre ligada a conflitos para resolver. O papel transformador e humanizador da mediação deverá passar da simples instância do processo judicial, ou de uma alternativa ao mesmo, para vir a ocupar um lugar central de uma nova cultura universal, próximo do que Torremorell (2008: 79) designa de “cultura de mediação”. Sabemos que se trata de um debate iniciado, já, mas muito aberto, ainda, também.

Entendemos que a mediação tem uma autonomia própria para além da resolução de problemas. A mediação sociocultural e intercultural é passível de usar em vários contextos, como vimos, não só na gestão e na dimensão paliativa dos conflitos, mas, também, a montante dos conflitos, antecipando-os, evitando-os e criando um ambiente de respeito pelos outros e por si próprio; um ambiente de cosmopolitismo para uma sociedade mais inclusiva.

São as práticas da relação, da mediação e de hospitalidade que permitem transformar o mundo numa casa para todos os seres humanos. É, pois, nesse sentido que os educadores devem ser valorizados como promotores das chamadas redes sociais, tanto primárias como secundárias ou terciárias” (Carvalho e Baptista, 2004: 93).

Da escuta ativa, entendimento e respeito pelo outro

Mediar implica uma escuta ativa e o entendimento do outro. De todos os outros, na sua própria racionalidade (lógica e entendimento). Por isso, não basta tolerar, é preciso respeitar, ainda que discordando de algumas tomadas de posição do(s) outro(s). Mediar interculturalmente é encontrar terceiros lugares de entendimento entre posições à vezes extremadas, que não são ainda, necessariamente, conflito [ainda não chegaram ao fim da linha – a foz do rio… (Vieira e Vieira, 2016 b))] mas que são já relações de discórdia e alguma tensão social.

Há, desde logo, aqui, alguma reconceptualização necessária a fazer em torno do conceito de tolerância. A mediação sociocultural não pretende introduzir a tolerância entre os agentes sociais envolvidos como o fim de um processo de reconciliação. A mediação tem que buscar transformações. E de todos os envolvidos. Transformações que têm de assentar num entendimento do entendimento do outro, aquilo que é vulgarmente definido como hermenêutica. Mas não numa hermenêutica unilateral, do dominante procura entender o mais frágil ainda que o venha apenas a tolerar. Mais que isso, como escreveu Boaventura de Sousa Santos, urge uma hermenêutica diatópica, quer dizer, a partir de cada um dos “topos”. A partir de cada um dos “dois” lugares. Ou, indo, ainda, um pouco mais longe, como esses dois lugares, ainda que ideais para pensar numa situação simples a mediar, urge partir de todos os lugares epistemológicos como já escrevemos anteriormente. Quer dizer, urge que o mediador sociocultural potencie hermenêuticas multitópicas (Vieira, A., 2013; Vieira, 2011) que levem ao entendimento e respeito, que não significa, necessariamente, concordância e identificação, e não apenas à tolerância. Como recorda Adalberto Dias de Carvalho, é preciso ter presente que

“se a tolerância não emerge de um ceticismo – que seria antes corolário da indiferença e do relativismo -, mas de uma atitude de aceitação da relação ou coexistência com o que recusamos ou, pelo menos, não aceitamos, tal quer dizer que a diferença – de opiniões, de crenças, de comportamentos ou de valores – não compromete a estranheza e a colocação do outro fora do perímetro privado da nossa identidade pessoal e/ou grupal. Aceitar a presença da alteridade não se identifica necessariamente com a partilha pura e simples dessa alteridade, quando se trata de uma alteridade radical. Com a alteridade radical pode coexistir-se, não tem que haver comunhão. É o caso da existência de várias confissões, pelo menos nos países europeus” (Carvalho, 2012: 64).

É por isso que dizemos que tolerar não basta (Vieira, 2011; Vieira e Vieira, 2016 b). Nos tempos modernos, o termo “tolerância” só adquiriu uma conotação positiva a partir do século XIX, com o livre pensamento. Até aí, a religião condenava a tolerância eclesiástica em relação aos não crentes. Hoje, a tolerância tornou-se, de repente, arma usada em muitos discursos políticos e político-partidários a favor da paz e da salvação do mundo. Mas, ser tolerante não basta. Não cremos que seja o caminho de podermos ser diferentes e vivermos juntos (Touraine, 1998). Quando muito poderíamos viver justapostos mas segregados e não comunicantes. A via da tolerância, como produto acabado, não parece ser o caminho da transformação diatópica ou multitópica, de que falámos, conducente a uma sociedade mais intercultural. Pelo contrário, a tolerância passiva promove a segregação.

Recoloca-se, de novo, sempre a questão de saber o que implica a ideia de tolerância relativamente às condutas de intolerância. Se se tolera a intolerância, aceita-se a injustiça. Então um mediador vai tolerar e sugerir a tolerância sobre quem agride outrem? Ou o mediador sociocultural tem de agir e, nesse momento, abandona os princípios da mediação clássica, assentes na neutralidade e na imparcialidade e tem de intervir, socialmente, tomando parte (uma blasfémia para os fundamentalistas da mediação clássica) sob pena de assistir e permitir a aprovação e reprodução da violência, seja ela de que tipo for? Complexo, provavelmente controverso e criticável pelos fundamentalistas da mediação de conflitos, mas que se prende com realidade social, aquela que nos interessa, e não apenas com técnicas, exercícios e princípios abstratos e gerais para usar formas de conciliação sem compreensão de contextos e identidades para produzir transformações (Vieira e Vieira, 2016 a).

Na verdade, a tolerância passiva conduz à intolerância ativa ou deixa-lhe o caminho aberto (Heritier, 1999). Significa que se se tolerar os atos intolerantes, sem mediação e contenção dos mesmos, se amplificam as intolerâncias. O que fazer, portanto, com os intolerantes? Talvez uma ação mediadora no sentido transformador e reabilitador (Torremorell, 2008; AAVV, 2008) assente na escuta ativa mas também na reflexividade dos implicados e, claro, dos intolerantes, o que passa por um processo educativo e de tomada de consciência das incompletudes das culturas e dos sujeitos (Freire, 2006, Santos, 1997, Demo, 2005, Jares, 2007), implicados que, do nosso ponto de vista, tem mais a ver com pedagogia social do que com a mediação clássica da “resolução de conflitos” (Vieira e Vieira, 2014; Vieira e Vieira, 2016).

Referências bibliográficas

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DEMO, Pedro (2005). Éticas Multiculturais: sobre convivência humana possível, Petrópolis: Editora Vozes.

FREIRE, P. (2006). Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática Educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra.

HÉRITIER, F. (1999). “O eu, o outro e a tolerância”, in CHANGEAUX, J-P. Uma mesma ética para todos? Lisboa: Piaget, pp 109-119.

JARES, Xesus Rodriguez (2007). Pedagogia da Convivência. Porto: Profedições.

NICOLESCU, Basarab (2000), Manifesto da transdisciplinaridade, Lisboa: Hugin.

SANTOS, B. de S. (1997). “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 48, pp. 11-32.

TORREMORELL, M. C. B. (2008). Cultura de Mediação e Mudança social. Porto Editora.

TOURAINE, A. (1998). Iguais e Diferentes: Poderemos Viver Juntos? Lisboa: Piaget.

VIEIRA, A. (2013). Educação Social e Mediação Sociocultural. Porto: Profedições.

VIEIRA, R. (2011). Educação e Diversidade Cultural: notas de Antropologia da Educação. Porto: Afrontamento e Leiria: CIID-IPL.

VIEIRA, A. e VIEIRA, R. (2014). “Pedagogia Social e Mediação Sociopedagógica Como Processos de Emancipação”, revista REALIS, Universidade Federal de Pernambuco, v.4, n. 02, Jul-Dez. 2014, pp. 105-125.

VIEIRA, A. e VIEIRA, R. (2016 a). Pedagogia Social, Mediação Intercultural e (Trans)formações, Porto: Profedições.

VIEIRA, R. e VIEIRA, A. (2016 b). “Mediações socioculturais: conceitos e contextos” in VIEIRA, R.; MARQUES, J.; SILVA, P.; VIEIRA, A. e MARGARIDO, C. Pedagogias de Mediação Intercultural e Intervenção Social, Porto: edições Afrontamento, pp. 27-55.

 

Setembro 10, 2016
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