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O fenômeno da pobreza na sua dimensão subjetiva

O fenômeno da pobreza na sua dimensão subjetiva

Docente do Instituto Politécnico de Beja

O desvendamento de mundos ocultos

Não é consensual que todas as pessoas “sentem ou vivem” a pobreza da mesma forma. Experienciar a pobreza influencia a vida que quem a vivencia, tornando-se essencial a compreensão deste fenómeno, enquanto expressão dos problemas e necessidades sociais, e como impulso para a procura de estratégias de intervenção social. O conhecimento produzido no estudo da subjetividade da pobreza, demonstra a necessidade de uma sensibilidade que percecione as diferenças na forma de a viver, atribuindo-lhe um contributo para a humanização das respostas sociais.

 

1. Pobreza subjetiva e existencial: perspetivas e debates

A pobreza, tradicionalmente relacionada com dimensões materiais e objetivas, associa-se igualmente a um perfil subjetivo que a contempla como ausência de liberdade, desenvolvimento e realização, afetando o Ser Humano na sua globalidade. (cf. Bruto da Costa et al, 2008). Relegar para segundo plano estas dimensões, comporta o risco de serem ignorados aspetos relevantes do problema.

A multiplicidade de interpretações sobre o conceito de pobreza, pode constituir um importante auxílio para completar olhares sobre o fenómeno. Numa posição antagónica, esta diversidade, contribuiu para a existência de equívocos, interpretações simplistas ou que reduzem a aspetos marginais uma análise que se quer profunda. Ao vivermos e fazermos parte da pobreza, parece que se conhece tanto e em simultâneo tão pouco sobre ela. (cf. Bruto da Costa el al, 2008).

De entre os vários horizontes conceptuais sobre a definição de pobreza, importa aqui realçá-la como uma situação existencial, mediante a qual são consideradas não apenas necessidades materiais, mas dimensões do foro psicológico, social, cultural, cuja insatisfação produz repercussões em aspetos como a personalidade, a relação com os outros e com a sociedade em geral.

Ao associar-se à vida social, a pobreza tem como uma das causas mais visíveis a quebra da ligação com o mundo do trabalho. A rutura com este importante elo estruturador da vida do Homem, torna visível como consequência imediata a perda de rendimentos, mas não se detém por ai.

Simboliza o início de sérias privações, incluindo a dimensão existencial do “ser pessoa” ao influenciar a perda de auto – estima, afetar as relações sociais do sujeito, existindo em muitos casos, uma diminuição da participação das pessoas na vida das comunidades. O começo de um percurso social descendente encontra explicação em boa parte nestes fatores.

Há que acautelar a utilização de termos como pobreza relativa ou pobreza absoluta, se os mesmos forem utilizados numa tentativa de atenuar a gravidade do fenómeno ao relativizá-lo. São por isso de repensar, as visões que pretendam constatar a dimensão subjetiva e existencial da pobreza como formas de ser pobre “relativamente”, pois que ser pobre implica muito mais do que viver abaixo de um determinado rendimento, convencionado por esta ou aquela sociedade como mínimo.

Parte-se aqui do pressuposto que a pobreza não se constitui como um problema individual, mas sim de índole estrutural inscrito em contextos sócio – históricos, que se constituem como variáveis imprescindíveis para o seu entendimento.

A maioria das análises sobre a pobreza partem essencialmente de critérios convencionados que deixam a descoberto dimensões mais subjetivas, não podendo este fenómeno reduzir-se

“… a uma realidade meramente financeira. A falta de rendimentos conduz à situação em que as necessidades básicas não podem ser satisfeitas, o que por sua vez, cria uma situação existencial que atinge os mais diversos e profundos aspectos da vida e da personalidade humanas.” (Bruto da Costa et al, 2008, p.30).

Trata-se, por isso, de uma situação de oportunidades desiguais de acesso a áreas como a educação, habitação, saúde, trabalho, segurança social, que confinam importantes sistemas de Politica Social. A pobreza revela-se de índole societária, enquanto problema social inscrito em contextos sócio – históricos, que colocam determinados indivíduos em situação de vantagem.

 

2. O significado de ser pobre

A forma como a pobreza é vivenciada, pode encontrar relação na própria conceção que o tecido social produz sobre o que é este fenómeno.

As representações sobre a pobreza, parecem oscilar entre a imputação da responsabilidade às pessoas que se categorizam como “pobres porque querem” ou considerar que este é um fenómeno da responsabilidade do Estado. Deste modo, é “…antiga…a controvérsia… (sobre) a solução adequada para o pauperismo entre o laissez faire no mercado e a instituição de um novo modelo social capaz de alcançar o objetivo de acabar com a pobreza. (Capucha, 2005,p.18).

Da análise às várias crenças associadas à pobreza, encontra-se muitas vezes expressa a sua relação com episódios de sorte ou azar na vida dos indivíduos. Os menos afortunados, neste caso os pobres, seriam assolados por diversos episódios de infortúnio, descurando-se os fatores de vulnerabilidade que expõem diversos indivíduos às situações de pobreza e as razões que conduzem a que umas pessoas consigam superar estes episódios e outras não disponham de meios para o fazer.

A pobreza, surge também associada a uma representação do pobre como alguém preguiçoso ou com falta de iniciativa, fazendo crer que as pessoas são pobres por falta de investimento ou vontade de trabalhar. Esta crença, não considera os mecanismos que geram as desigualdades de oportunidades no mundo do trabalho e aos níveis de renumeração justos.

Por fim, uma outra das crenças sobre a pobreza, tende a associá-la à cultura e estilos de vida das pessoas, ao acreditar-se que “…pobres sempre haverá…indo ao ponto de pensar que os pobres gostam da sua pobreza…são assim…estão habituados.” (Silva, 1990,p.138).

A coexistência de mentalidades que entendem o fim da pobreza como uma meta a alcançar e, por antítese, a convivência quase que “natural” com este fenómeno, são contra – sensos que convivem a par e passo em muitas sociedades.

A pobreza existencial e a forma como é vivida, encontra explicação num ciclo e reprodução da pobreza que coloca uns em situação de maior vantagem em relação a outros. Tal facto, ultrapassa de todo patamares de índole material, ao contemplar dimensões como a pertença a uma comunidade social e economicamente desfavorecida, ser portador de deficiência, ter problemas com o alojamento ou não possuir uma habitação, ter um percurso de insucesso ou abandono escolar, possuir fracas qualificações académicas e profissionais, pertencer a uma família com recursos insuficientes, viver em situação de precaridade laboral ou estar desempregado, ser alvo de segregação ou racismo e/ou ser alvo de estigma social. (cf. Capucha, 2005).

Encontra-se em causa uma justa socialização /repartição da riqueza e a existência de oportunidades dignas para, efetivamente, todos os cidadãos. A pobreza encontra nestas dimensões subjetivas, mais uma vez, a aproximação a uma não cidadania, pois que persistem

“…zonas mais isoladas onde não chegam os serviços sociais, as mulheres e as famílias continuam a ser as grandes provedoras dos cuidados dos mais fracos, possuir ou não uma habitação é um elemento chave de inclusão/exclusão, a vulnerabilidade perante determinados processos (envelhecimento, doença, falta de trabalho…) e acontecimentos (separações, viuvez) é maior, o pertencer ou não a uma determinada classe da população ou a um circuito clientelar é um elemento diferencial para poder sair da marginalização.”(Estivil, 2000: 122)

Deste modo, o papel supletivo, pontual e pouco relevante do mercado na cobertura das necessidades sociais reduz, quase sempre, o protagonismo do mercado a áreas que se afiguram como rentáveis, como a prestação de serviços a crianças e sobretudo a pessoas idosas. Estes são elementos que conduzem à noção de sociedade – providência que nasce, em boa parte, associada à necessidade de intervenção nas desigualdades geradas pelo mercado e perante uma progressiva desresponsabilização do Estado perante as mesmas.

As grandes contradições e desigualdades da sociedade contemporânea, compõem os múltiplos fatores implicados no nível subjetivo e existencial da pobreza. Ser pobre implica viver uma experiência impregnada de heterogeneidade, nem sempre passível de ser entendida na sua plenitude, mas que importa ser refletida.
A pobreza traduz-se como uma experiência humana e social, tratando-se de um fenómeno que o Ser Humano vivencia em sociedade, não se submetendo a condutas lógicas e puramente racionais.

Embora estas condutas não sejam necessariamente instáveis, a trajetória humana da experiência da pobreza pode considerar-se como uma combinação de várias lógicas de ação, sendo que “A experiência social forma-se no caso em que a representação clássica da “sociedade” já não é adequada, no caso em que os actores são obrigados a gerir simultaneamente várias lógicas de ação, que remetem para diversas lógicas do sistema social…” (Dubet, 1994, p.94).

Não existe uma única lógica para agir, viver a experiência social da pobreza. Não existe uma forma única ou recomendável, mas sim gerada pela atitude dos sujeitos. Uma primeira aproximação ao significada desta experiência pode traduzi-la como algo pessoal e subjetivo, um segundo patamar encaminha-nos para o “vivido”, sendo este por si ambíguo e ambivalente, quase irracional, e ao mesmo tempo espelho de uma consciência individual das vivências em sociedade. Outra significação da experiência social da pobreza, situa-a no patamar da atividade cognitiva de apreensão do real, capaz de construir uma determinada interpretação do mundo. (cf. Dubet, 1994).

O princípio da subjetivação centra-se no que é do sujeito, na sua autenticidade, no relato da sua experiência dentro do conjunto de “experiências” sobre a pobreza. A valorização da subjetividade surge como a possibilidade de reconstruir o alcance objetivo de uma consciência individual, de grupo ou de época. A pobreza narrada do ponto de vista de quem a vivencia, implica um conjunto de “…memórias…selectivas e afectivas, não constituindo um registo neutro que evocam.” (Pais,2001:107).

A análise da pobreza por este prisma, configura-se pela necessidade de identificar processos pessoais e sociais, no quadro do carácter dinâmico e processual da exclusão social. Considera-se a reorientação para a criação de Politicas Sociais que visem populações particulares e zonas sociais específicas, enquanto “…novas estratégias de gestão da pobreza e da exclusão social, distintas das políticas categoriais do Estado – Providência e assentes na categorização sistemática de públicos…” (Branco, 2001, p.8).

O sentido que as pessoas pobres conferem à sua situação, pode em parte ser construído através de um processo de desqualificação social, produzido pela “etiquetagem” atribuída ao estatuto de pobre, conduzindo a posições de recusa, interiorização ou negociação desse estatuto. (cf. Paugam, 2003).

Por outro, lado ser pobre pode relacionar-se com elementos sócio – históricos e culturais que revestem a pobreza de uma dimensão simbólica, integrante da (re)construção da identidade de quem a vive, assumindo-se como a ténue fronteira entre estar integrado ou estar excluído. (cf. Capucha, 2005).

Captar outros sentidos da pobreza, implica considerar dimensões de análise sobre a sua incidência, intensidade e severidade. É por isso necessário considerar os fatores de vulnerabilidade, que expõem determinados indivíduos à pobreza e compreender as razões que conduzem uns a superar a sua situação de pobreza, enquanto que outros não dispõem de meios necessários para o fazer.

O contacto com as vidas “vividas” dos pobres na primeira pessoa, é por isso fonte de desafios para quem os partilha e para quem os pretende retratar e interpretar. É o desvendamento de mundos por vezes ocultos.

 

Referências

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Branco, F. (2001). A Face Lunar dos Direitos Sociais. Tese de Doutoramento em Serviço Social: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

Branco, F. (1996). A Nova Centralidade dos Direitos Sociais e os Desafios à Formação e Intervenção em Serviço Social. Intervenção Social nº 13/14, pp.41-53

Bruto da Costa, A. (coord.) et al (2008). Um Olhar Sobre a Pobreza. Vulnerabilidade e Exclusão Social no Portugal Contemporâneo. Lisboa: Gradiva

Capucha, L. (2005). Desafios da Pobreza. Oeiras: Celta Editora

Carmo, R. (2010). Desigualdades Sociais 2010. Estudos e Indicadores. Lisboa: Editora Mundos Sociais, disponivel em http://observatorio-das-desigualdades.cies.pt

Dubet, F. (1994). Sociologia da Experiência. Lisboa: Instituto Piaget

Estivil, J. (2000). Uma Perspectiva desde o Sul: Cores Diferentes para um Mesmo Mosaico Europeu. Comunicação apresentada no Seminário “Politicas e Instrumentos de Combate à Pobreza da União Europeia: a garantia de um Rendimento Mínimo”, organizadapela Presidência da União Europeia
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (2001), Lisboa/Rio de Janeiro: Página Editora

Morgado, M. V. (1996). Direitos Sociais e Acção Social – breve reflexão e ponderação do seu contributo no combate e prevenção da exclusão social. Lisboa: Direcção Geral da Acção Social – Núcleo de Documentação Técnica e Divulgação

Pais, J. M. (2001). Ganchos, Tachos e Biscates. Porto: Âmbar

Paugam, S. (2003). A Desqualificação Social – Ensaio sobre a nova pobreza. Porto: Porto Editora (Trabalho original em francês publicado em 1991)

Pereira, P. (2002). Necessidades Humanas – Para una crítica a los patrones de sobrevivência. São Paulo: Cortez Editora. (Trabalho original em português publicado em 2000)

Silva, M. (1990). Uma reflexão sobre a Pobreza em Portugal” in Os pobres na Bíblia e na Vida de Hoje. Lisboa: Difusora Bíblica

Xiberras, M. (1993). As Teorias da Exclusão. Lisboa: Publicações Instituto Piaget

Fevereiro 25, 2016
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