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Portugal no ciclo internacional de protesto

Portugal no ciclo internacional de protesto

Sociólogo

Mergulhada num processo de empobrecimento acelerado, a sociedade portuguesa tem testemunhado a emergência de processos de mobilização coletiva de dimensão inédita e em formatos a que não estávamos habituados. Como interpretar estas manifestações que vêm sacudindo o país desde há dois anos? Como pensá-las no contexto europeu e internacional? O que as sustenta e que características as aproximam de outros fenómenos que têm eclodido um pouco por todo o mundo?

Desde os finais de 2010, com a revolução tunisina que desencadeou a Primavera Árabe, assistimos a uma nova vaga internacional de mobilizações que revela uma crise de legitimidade dos agentes políticos, um descontentamento generalizado com as respostas face à crise económica e uma contestação dos processos de precarização laboral. Estes acontecimentos contestatários parecem assumir um caráter fundacional, criando uma cultura e uma marca identitária. Em função da comunicação em rede e da difusão internacional, a ocupação da praça Tahrir e a Revolução no Egito, as sublevações um pouco por todo o mundo árabe, os Indignados espanhóis, o movimento das praças na Grécia, o movimento Occupy nos EUA, a luta dos estudantes chilenos, entre outros exemplos, produziram um certo sentido de “comunidade imaginada global”, através do qual as experiências de diferentes países se contaminaram e continuam a inspirar-se.

Perante protestos com motivações, características e modalidades de ação tão diversificadas, faz sentido invocar a noção de um “ciclo”? Na verdade, tem sido possível identificar alguns elementos comuns: um discurso centrado na denúncia do sistema económico e na captura das instituições e agentes políticos pelo poder financeiro; a exigência de “mais” ou de uma “verdadeira” democracia; a juventude precarizada como catalisador de lutas sociais mais amplas; uma certa recusa da delegação e um ceticismo mais ou menos ressentido com a ação institucional; a produção de novas referências plásticas e estéticas; a ocupação transgressiva do espaço público; a valorização da diversidade de expressão nos protestos de rua; o uso intensivo das redes sociais; a importância da cultura audiovisual e das novas tecnologias de informação e comunicação; a busca de formas tendencialmente horizontais de organização.

Em Portugal, este ciclo de ação coletiva teve o seu acontecimento fundacional na manifestação da geração à rasca em março de 2011 e a sua expressão mais recente nos protestos convocados pelo grupo “Que se Lixe a Troika” a partir de 2012. Aqui, como noutros países, estas manifestações têm evidenciado que a cidadania potencialmente ativa vai muito para além das formas mais clássicas de organização de interesses nas sociedades contemporâneas – partidos, sindicatos, movimentos sociais, organizações não governamentais. E essa é uma novidade que interpela o pensamento crítico sobre a realidade.

Mais do que movimentos sociais – que implicariam a existência de um adversário claramente identificado, de um objetivo comum, de formas de mobilização de recursos capazes de sustentar uma luta prolongada e de modos de organização com alguma continuidade – este ciclo de ação coletiva tem sido sobretudo marcado, no nosso país, por grandes manifestações e acontecimentos contestatários. Iniciado a 12 de março de 2011, ele tem tido uma sequência de momentos marcantes. Por ordem cronológica, o 15 de outubro de 2011 (Dia de Ação Global), a greve geral de 24 de novembro de 2011 (organizada conjuntamente pela CGTP e pela UGT), a Primavera Global de 12 de maio de 2012, o 15 de setembro de 2012 (Que se Lixe a Troika), o 13 de outubro de 2012 (manifestações culturais do Que se Lixe a Troika), a greve geral com dimensão europeia de 14 de novembro de 2012 (que aconteceu em Portugal, Grécia, Espanha, Malta e Chipre) e o 2 de março de 2013 (a manifestação do movimento Que Se Lixe a Troika aquando da avaliação do cumprimento do Memorando).

A dinâmica de que fazem parte estes fenómenos é marcada por diferentes lógicas e por acontecimentos com importância diversa e temporalidade nem sempre coincidente. Mas o pano de fundo no qual irrompem parece claro: a precarização do trabalho e a instalação em força do desemprego de massa, nomeadamente entre os mais jovens; a crise económica causada pelo “golpe financeiro”; a des-democratização da democracia e a desafeição relativamente à representação política e institucional. No contexto europeu – e em particular na periferia a que pertencemos – todas estas tendências se agravam com a lógica de austeridade. Como tem referido o sociólogo António Casimiro Ferreira, instalando uma espécie de “política de requisição civil”, ela opera através da combinação de atores eleitos e não eleitos (no caso português, o governo e a Troika), recorrendo a um direito de exceção e a uma forma de governação orientada por um processo de legitimação baseado no medo. Os seus efeitos políticos são o desmantelamento do Estado Social, pela tripla via da privatização dos bens públicos, da individualização dos riscos sociais e da mercadorização da vida social. Assentando a sua retórica no clamor por “sacrifícios” em nome do bem comum, resulta contudo evidente que são precisamente as classes subalternas e os escalões mais pobres aqueles que têm sido sacrificados pela compressão da procura e do poder de compra, pela recessão, pela descida de salários, pelo acréscimo de assimetrias na relação laboral ou pelo aumento das desigualdades.

Mediante esta realidade, os protestos a que nos vimos referindo são o canal da expressão da indignação cidadã contra o poder financeiro e político que conduz este processo. Ao trazerem de novo as praças e as ruas para o centro do debate público e da vivência democrática, eles são formas concretas de comunhão e de exercício da participação. É certo que a Internet e os dispositivos de comunicação sem fios desempenharam, neste ciclo de lutas, um papel fundamental, não apenas como meios de comunicação, mas como elementos que prefiguram as formas de organização, de deliberação e de participação, dando lugar a novas práticas colaborativas, à reinvenção democrática e à abertura de novos horizontes políticos. Mas foi no espaço físico das cidades que os protestos atingiram o seu clímax.

Um dos debates estratégicos mais importantes que se coloca passa por saber que tipo de convergências existem ou podem desenvolver-se entre estas novas dinâmicas de mobilização e as organizações e movimentos existentes, sejam os sindicatos, os movimentos, as associações ou as instituições sociais e políticas. Em Portugal, a relação entre estes agentes foi inicialmente marcada por tensões mas a confluência tem sido crescente e teve no passado 2 de março de 2013 um momento alto de ação comum. De facto, historicamente, é na articulação entre protesto e proposta, rua e programa que se têm produzido as grandes transformações. Desses diálogos e desses encontros depende também a possibilidade de se criarem novas subjetividades capazes de configurar alternativas políticas concretas. Ninguém poderá prever o futuro e as consequências destas mobilizações. Mas riqueza da realidade, sobretudo em tempos de bifurcação como os que vivemos, é precisamente a sua indeterminação.

Agosto 19, 2013
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