Dois anos depois do lançamento do Projeto InclusivaMente, desenvolvido pela Fundação Vasco Vieira de Almeida em parceria com a EAPN Portugal, tem sido para nós, promotoras e formadoras, uma experiência extremamente enriquecedora.
Ao disponibilizarmos informação sobre a legislação internacional e nacional que enquadra a prestação de cuidados aos maiores mais vulneráveis (pessoas com demência, deficiência ou doença mental) aprendemos, igualmente, com as práticas e dificuldades sentidas pelos profissionais das entidades de economia social.
Ao longo de 24 meses, período em que tivemos oportunidade de nos familiarizar com a realidade de todos os distritos do país e da Região Autónoma da Madeira, a ideia que originou o projeto, não só se confirmou como se aprofundou.
Constatámos o elevado índice de iliteracia jurídica que afeta colaboradores e dirigentes das organizações prestadoras de apoio a estes grupos populacionais e violação reiterada de alguns direitos fundamentais relacionados com a autodeterminação na gestão do seu património e definição do projeto de vida, a falta de consentimento informado para a intervenção na saúde e a insuficiente implementação do novo Estatuto do Maior Acompanhado.
A promoção dos direitos dos mais frágeis continua a ser um tema tabu em muitas instituições e a atuação centrada na pessoa e nos seus interesses tende a ser preterida por uma gestão focada, sobretudo, nos processos, na eficiência e na eficácia dos recursos.
Na reta final deste périplo fica uma sensação ambivalente de dever cumprido e de inquietação, pois desconhecemos se os participantes terão o necessário apoio das suas Direções e/ou das estruturas de tutela para mudarem o paradigma da intervenção.
E, todavia, a viagem que propomos nesta formação, ao universo jurídico nacional e internacional, é fundamental para garantir uma intervenção de qualidade que preserve a dignidade dos clientes e que garanta que os cuidadores formais estão em condições de serem verdadeiros embaixadores da defesa dos direitos dos beneficiários.
O Projeto InclusivaMente é, pois, uma arma poderosa de inclusão que visa agitar as consciências de quem trabalha nestes domínios, espicaçar o pensamento crítico e convidar a revisitar ideias feitas, preconceitos gestionários e práticas ultrapassadas.
Estamos convictas de que após a participação nas sessões formativas, os participantes são desafiados a repensar a forma como atuam e como percecionam o seu posto de trabalho.
Mas a mudança global que se exige pressupõe a disseminação destes conteúdos junto dos dirigentes, dos próprios clientes e dos cuidadores informais, de modo a que exista uma cultura de direitos que enquadre a prestação de cuidados.
De outra forma, continuaremos focados na satisfação das necessidades básicas sem darmos o salto qualitativo que se impõe e que os clientes do futuro exigirão.
A pandemia veio despertar uma nova consciência, pôr a nu as insuficiências de meios e competências e agitar a bandeira dos direitos daqueles que, por força de residirem em estruturas coletivas estão, muitas vezes, condenados a um perigoso confinamento e isolamento.
O Projeto InclusivaMente antecipou este cenário, denunciou-o, mas deu armas e dicas aos profissionais para que possam lutar pela melhoria contínua da sua atividade, mesmo em contextos de elevada complexidade.
Mais do que nunca, é crucial assegurar a autonomia, o consentimento, o planeamento do futuro, e o envolvimento no projeto de vida daqueles a quem prestamos cuidados. Por eles e por nós. Pelo presente e pelo futuro. E é esta perspetiva integrada que o novo Estatuto do Maior Acompanhado veio trazer.
O conteúdo formativo deste projeto procurou dar ênfase ao enorme potencial que este regime tem a nível da relevância da vontade antecipadamente expressa. Os participantes foram sensibilizados para a importância de darem a conhecer aos seus clientes a possibilidade de nomearem um procurador para cuidados de saúde, de fazerem um Testamento Vital, de celebrarem um mandato com vista ao acompanhamento ou de, antecipadamente escolherem o seu acompanhante. Os frutos da transmissão destes conteúdos podem não ser colhidos de imediato havendo que aguardar algum tempo para perceber o seu verdadeiro impacto.
Ao mesmo tempo que fazemos um balanço de dois anos de Projeto InclusivaMente importa também falar um pouco da nossa experiência junto dos tribunais.
De um modo geral, os processos, agora considerados urgentes, tornaram-se muito mais céleres, ficando concluídos em poucos meses. Contudo, ainda existem processos que, sem complicações de maior, se arrastam por mais de um ano, quase sempre por dificuldades na realização das perícias médicas. Isto deve-se ao aumento muito significativo do número de processos especiais de acompanhamento de maior que neste momento correm nos tribunais.
De notar que foi possível constatar a preocupação dos tribunais para que os processos não ficassem parados durante a pandemia. Assim, tanto as avaliações periciais como a audição presencial do beneficiário foram sendo feitas através de meios telemáticos. Sendo que os funcionários judiciais também não deixaram de se deslocar aos domicílios ou às instituições para proceder à citação pessoal dos beneficiários.
Verificamos também que as famílias e as instituições estão hoje muito mais motivadas para a importância de avançar com estes processos, contribuindo para tal, o facto de o atual regime ser muito menos estigmatizante e muito mais promotor da autonomia e da dignidade das pessoas que carecem de medidas.
Embora não seja o mais comum, vão-se verificando situações em que são as próprias pessoas com capacidade diminuída que requerem as medidas de acompanhamento e que escolhem o seu acompanhante ou acompanhantes.
Para as pessoas com problemas de saúde mental que preservam considerável grau de autonomia é extremamente relevante a possibilidade de poderem continuar a exercer direitos pessoais como o direito de voto, o direito de escolher profissão, o direito a casar ou de viver em união de facto, bem como a prática de negócios da vida corrente.
Como aspeto menos positivo é de referir que apesar de os juízes terem poderes para efetuar as averiguações e as diligências de prova que considerarem pertinentes, quase sempre se bastam com o que lhes é levado ao processo ficando com a perspetiva do requerente, que pode não ser a que melhor promove os direitos do beneficiário. E, por vezes, impõe-se uma averiguação mais aprofundada, nomeadamente quanto a apurar se existem ou não outros familiares ou pessoas próximas que melhor possam salvaguardar os interesses do beneficiário.
Questão que, por vezes, se coloca é a do acesso à informação clínica muito útil para preparar o requerimento inicial. Sendo a informação clínica propriedade do próprio, os médicos, cada vez mais, se recusam (e com legitimidade) a emitir um relatório clínico a pedido do familiar. Quando tal acontece, o trabalho do advogado torna-se mais complicado tanto mais que, quase sempre, há que fundamentar o pedido de suprimento da autorização do beneficiário. Havendo que requerer que seja o tribunal a solicitar a informação clínica, isto implica alguma morosidade.
Importa assim sensibilizar as pessoas para, quando ainda no uso das suas capacidades cognitivas conferirem a alguém da sua confiança, poderes para aceder à sua informação clínica.
Por fim, um aspeto que nos preocupa: os dirigentes e técnicos das instituições continuam a assumir o acompanhamento dos seus clientes que não têm familiares. E fazem-no porque, face à lacuna legislativa, a alternativa é o arquivamento do processo e a consequente desproteção da pessoa com capacidade diminuída.
Este foi um tema muito debatido durante as sessões de formação e tivemos oportunidade de transmitir o nosso desconforto quanto a este aspeto junto da Senhora Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social com quem reunimos a fim de apresentar o Projeto InclusivaMente.
Estamos, pois, com esperança de que, ainda em 2021 seja possível recentrar prioridades e encetar todos os esforços para impulsionar a tão necessária mudança de paradigma na intervenção com pessoas idosas, dependentes ou com capacidade diminuída, continuando o Projeto InclusivaMente na linha da frente da capacitação e apoio às organizações prestadoras de cuidados.