As desigualdades sociais fazem parte da nossa História. E é quando analisamos as desigualdades em saúde, e mais especificamente, em saúde oral, que verificamos o quão inter-relacionadas estão. A grande maioria dos estudos que encontramos têm incidido sobretudo sobre as desigualdades em saúde como outputs de desigualdades sociais. Ou seja, é investigação que se foca em indicadores de saúde na sua inter-relação com variáveis como o género, a classe social, a etnia, localização geográfica,,,. E há quem defenda que existe um “social gradient” na distribuição da saúde e da doença, isto é, para além das circunstâncias de viver em pobreza serem mais “pesadas” para determinados grupos sociais, quanto mais longa é a vivência neste tipo de contextos, maior probabilidade existe de o indivíduo sofrer vários problemas de saúde. Ora, a doença oral encaixa claramente neste pressuposto, a par de outras doenças crónicas/não transmissíveis.
Em Portugal, o serviço público só consegue disponibilizar tratamento dentário a uma parte da população, devido sobretudo à escassez de recursos, tendo a outra parte de recorrer ao serviço privado, onde ou efetua um pagamento direto ou é apoiada por seguros privados de saúde. As populações mais vulneráveis, vivendo muitas delas no limiar ou abaixo do limiar da pobreza, são também as que possuem maiores necessidades de cuidados de saúde oral, ainda assim, o tratamento oral é providenciado maioritariamente a quem tem uma condição socioeconómica mais favorável. Por conseguinte, a Medicina Dentária não é o “parente pobre” da Medicina, mas antes o “parente rico”. Segundo a Federação Dentária Internacional (FDI), a doença da cavidade oral é a quarta mais cara de se tratar. É com base nesta contextualização que pretendemos focar a nossa reflexão sobre a importância da intervenção em saúde oral no trabalho social desenvolvido junto das populações socioeconomicamente mais vulneráveis, utilizando como exemplo o Projeto “Centro de Apoio à Saúde Oral – C.A.S.O.”, desenvolvido pela ONGD Mundo a Sorrir.
Olhando para o panorama português, segundo os dados mais recentes do Barómetro de Saúde Oral sabemos que 70% da população tem falta de dentes naturais e 10% não tem um único dente em boca; dos que têm falta de dentes, 48,6% não tem dentes de substituição; 31,6% nunca visita o médico dentista ou apenas o faz em caso de urgência; 72,4% afirmou ter tido, pelo menos uma vez, dores de dentes/gengivas.
Estes dados espelham a realidade daquilo que tem sido a evolução das respostas em saúde oral, nomeadamente no que diz respeito a programas promovidos pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). O primeiro programa com um foco de prevenção junto das crianças em idade escolar teve a sua aplicação prática no final dos anos 1980. Em 2008 surgiram os primeiros “cheques-dentista” que, infelizmente nos dias de hoje, continuam a ter uma adesão bastante inferior ao esperado. Em 2015 é implementado um projeto-piloto de integração de médicos dentistas no SNS, que, à data de hoje, conta já com 156 Centros de Saúde integrados em ACES das 5 regiões de Portugal Continental, que possuem um médico dentista. Os tratamentos realizados restringem-se às restaurações, exodontias (extrações), tratamentos endodônticos (desvitalização) e periodontais (destartarização, por exemplo). Ainda assim, continuamos a ter mais de 90% dos médicos dentistas portugueses a trabalhar exclusivamente no setor privado. Não admira que, segundo o mesmo Barómetro, 59,4% dos portugueses afirme não saber que o SNS disponibiliza serviços de Medicina Dentária.
As soluções existentes não só não conseguem colmatar as necessidades que as pessoas têm como também não são uma alternativa para quem está numa situação de maior vulnerabilidade social/económica. Foi perante este problema que a ONGD Mundo a Sorrir decidiu implementar, há 11 anos atrás, um Centro de Apoio à Saúde Oral (Projeto C.A.S.O.), uma clínica dentária de âmbito social, com o propósito de contribuir para melhorar a saúde e o bem-estar das populações socioeconomicamente vulneráveis, através da prestação de cuidados médico-dentários com qualidade e dignidade. Dispondo de 6 gabinetes dentários, esta resposta social está implementada nos concelhos do Porto, Braga e Lisboa, e funciona através de uma rede de mais de 85 parceiros locais (IPSS’s, Cooperativas, Fundações, Juntas de Freguesia, Autarquias), que encaminham os beneficiários mais carenciados para realizarem os tratamentos dentários necessários, incluindo a reabilitação oral com prótese dentária. Em 11 anos de trabalho, foram mais de 7.000 as pessoas beneficiadas, com mais de 60.000 tratamentos realizados.
Mas em que medida é que a nossa intervenção contribui para o trabalho social que é desenvolvido com este tipo de público-alvo? Em primeiro lugar, pelo tipo de metodologia usada. Os parceiros sociais encontram neste projeto uma resposta que suprime uma necessidade clara e objetiva. Quando falamos em intervenção social e nos apoios que existem a nível da alimentação, da habitação, da procura de emprego, de apoios psicológicos e jurídicos, etc., percebemos que as instituições que prestam estes apoios ficam limitadas na sua ação quando se trata de apoio ao nível da saúde oral. Para muitos dos nossos parceiros, o projeto C.A.S.O. é a única alternativa de resposta. Em segundo lugar, o plano de tratamento é focado na reabilitação oral do indivíduo, que culmina na maioria dos casos, na colocação de próteses dentárias. Esta é uma carência bastante significativa no seio destas pessoas, sobretudo porque apresentam um estado de saúde oral bastante deteriorado. Em último lugar, apesar de se tratar de uma clínica dentária, é um projeto social, desenvolvido por profissionais qualificados não só da área da saúde como também da área social, o que faz com que a abordagem ao indivíduo seja multidisciplinar. A par do tratamento dentário, existe um esforço de acompanhamento psicossocial destas pessoas, principalmente no que diz respeito à gestão das expectativas, ao grau de satisfação com os serviços e à avaliação do impacto social.
Ao longo de 11 anos de trabalho, ocorreu uma evolução muito positiva que se verificou sobretudo no afinamento de metodologias e na melhoria das práticas. Entre Julho de 2017 e Junho de 2019 tivemos a oportunidade de pôr à prova a nossa capacidade de trabalho, de cumprir metas e principalmente, de medir o nosso impacto. Da análise realizada por uma consultora externa, verificou-se que o projeto C.A.S.O. tem 3 grandes impactos: na autoestima e auto perceção – 80% dos beneficiários reportou melhoria da autoestima; na saúde e qualidade de vida – 90% dos beneficiários eliminaram ou reduziram significativamente as dores, melhoraram a fala e a mastigação; na sensibilização para a saúde oral – 100% dos beneficiários faz a higienização dos dentes após o projeto e 83% escova 2x/dia. Estes dados permitiram comprovar que o trabalho efectuado vai muito para além daquilo que é o tratamento dentário e a resolução do problema a curto prazo.
Em conclusão, procura-se com este projeto e esta metodologia inverter os papéis na relação entre desigualdades sociais e saúde/doença. Aqui, a “doença oral” é entendida como um fator de desvantagem nos trajetos de vida destes indivíduos e, por isso, defendemos que a saúde deve ser vista como “capital”, na linha de Pierre Bourdieu. Desta forma, a intervenção no domínio da saúde, e particularmente na saúde oral, é vista como uma forma de capacitação do indivíduo, um “recurso” que ajuda a potenciar o sentido de envolvimento e de ação coletiva, de pertença e de integração, de participação pública, e em última análise, potencia o “desenvolvimento comunitário”. Para a Mundo a Sorrir, e particularmente para o Projeto C.A.S.O., a saúde oral é uma ferramenta essencial que contribui para complementar o trabalho realizado pelas instituições sociais que apoiam as populações mais vulneráveis.