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Todos os dias nos confrontamos com estatísticas da pobreza

Todos os dias nos confrontamos com estatísticas da pobreza

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vice-Presidente do Instituto Europeu

Todos os dias nos confrontamos com estatísticas da pobreza que acabam por trivializar as nossas percepções e tendem para as colocar ao nível do produto nacional bruto, do défice orçamental ou das cotações bolsistas.

A pobreza ganha terreno.

Na Rússia, após 10 anos de progresso, a pobreza recrudesceu.

Na Bélgica, três em cada dez crianças vivem em estado de pobreza.

Um quarto da Europa está nas margens da pobreza.

A desigualdade entre ricos e pobres está ao mais alto nível verificado, desde há trinta anos, nos países da OCDE.

Há 11,7 milhões de espanhóis a viverem na exclusão.

As alterações climáticas agravam, por todo o lado, o estado de pobreza.

No mundo, há 2,2 mil milhões de pobres, dos quais metade são crianças.

Também entre nós a pobreza atingiu níveis preocupantes.

O inquérito às condições de vida e rendimento realizado, em Portugal, em 2017, e vindo a lume esta semana, mostra um pequeno progresso em relação ao ano anterior mas é, mesmo assim, assustador. Dois milhões e trezentas e noventa e nove mil pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, das quais 18% (431 mil) são menores e 18,8% (451.000) são maiores de 65 anos.

Se, porém, recorrermos aos dados da Comissão Europeia, encontraremos um quadro sinóptico que é ainda mais expressivo e escandaliza tanto quanto se refere ao continente dito mais desenvolvido:

– 24% da população total da União (mais de 120 milhões de pessoas) estão ameaçadas de pobreza e exclusão social.

Este número engloba 27 % de crianças, 20,5 % de maiores de 65 anos e (espantemo-nos!) 9 % de pessoas com emprego;

– 9% de pessoas vive num estado de privação material. Não dispõe de recursos para comprar uma máquina de lavar, um automóvel, um telefone ou um aquecedor;

– 17% dos europeus dispõem de um rendimento inferior a 60% do rendimento médio do seu país;

– 10% dos europeus vivem num agregado familiar em que ninguém tem emprego;

– Há 12 milhões de mulheres a mais do que homens a viver em estado de pobreza;

– dois terços de pessoas pertencentes à etnia cigana não têm emprego, só uma criança em cada duas vai para o infantário e só 15% acaba o ensino secundário.

Podemos, por isso afirmar que, com a crise, a Europa assistiu a um aumento de bolsas de pobreza que atingiu todas as gerações, mas particularmente os mais jovens.

Os diagnósticos têm sido realizados por defeito, pois a utilização de sistemas tradicionais de mensuração deixou, muitas vezes, de fora jovens que beneficiaram do acolhimento em ambiente familiar.

No entanto, a inactividade e a consequente exposição à marginalidade e ao desemprego de longa duração colocaram também estes jovens em risco de pobreza.

A emigração desordenada foi uma solução mas os que ficaram e os que, depois, regressaram, enfileiraram, muitas vezes, numa categoria de “novos pobres”: jovens adultos com um nível de literacia superior ao das gerações anteriores mas marcados por síndromes de carência de identidade, de iniciativa e de adaptação.

Nas palavras de Sofia, vemos, ouvimos e lemos.

Não podemos ignorar.

E, contudo, não faltaram e não faltam na União Europeia ideias e projectos.

É de recordar que, entre 1975 e 1994, a Comunidade Económica Europeia tinha incrementado vários projectos e programas-piloto relativamente à luta contra a pobreza.[1]

No entanto, esta iniciativa política foi severamente contestada por falta de base jurídica.

A situação mudou com a aprovação, em 1999, do Tratado de Amesterdão que consagrou a erradicação da exclusão social como um objectivo da política social comunitária.

A luta contra a exclusão social encontra-se agora expressamente consagrada nos artigos 9.º e 153.º do TFUE como essencial para a definição e execução das políticas e ações da União Europeia.

Por seu turno, a Estratégia de Lisboa, lançada em 2000, estabeleceu um mecanismo de controlo e de coordenação que visava estabelecer objectivos, calcular a pobreza graças a um conjunto de indicadores e de valores de referência e formular orientações e planos de acção nacionais.

Em 2005, a Comissão propôs a racionalização dos procedimentos, com um novo quadro para as políticas em matéria de protecção social e inclusão.

Neste quadro, foram especialmente ventilados os problemas da coesão social, da igualdade entre homens e mulheres e da igualdade de oportunidades.

Por outro lado, uma das principais inovações da Estratégia Europa 2010 para um crescimento inteligente, durável e inclusivo foi o estabelecimento de um novo objectivo comum na luta contra a pobreza e exclusão social: a redução em 25%, o que significava tirar 20 milhões de pessoas desta situação.

Outras medidas foram adoptadas a nível legislativo, orçamental e de acção política.

O problema da pobreza a nível europeu fixou-se tradicionalmente em teorias económicas e sociológicas e no empirismo estatístico.

No entanto, os instrumentos tradicionais de análise têm como denominador comum pretenderem ir às causas subentendendo a noção de pobreza e sobrevalorizando o método estatístico que normalmente globaliza os campos de observação sem atendar às especificidades de cada comunidade.

Recentemente, o debate orientou-se para outros tópicos, em que avulta o da filosofia da pobreza.

Na filosofia da pobreza, as abordagens conferiram um valor particular à ética da responsabilidade e à ética da estratégia.

Os métodos estatísticos, económicos, sociológicos ou antropológicos não perderam a sua importância mas procura-se fugir a análises predominantemente categoriais tais como:

pobreza absoluta / pobreza relativa

pobreza crónica / pobreza transitória

pobreza rural / pobreza urbana

pobreza na juventude / pobreza na velhice

porquanto representam frequentemente a desvalorização de aspectos multidimensionais e meta-dimensionais.

A filosofia vai às razões e é explicativa.

Não se satisfaz com índices avulsos cujo contributo é indispensável mas insuficiente.

Basear-se num coeficiente numérico (por exemplo, recursos mínimos de um 1,25 dólares por dia) ou na agregação de certos dados, como os de má nutrição, da protecção na doença ou da mortalidade infantil, pode ocultar factores que, não possuindo a mesma força mobilizadora, explicariam aspectos de estigmatização e mobilidade social sem os quais é difícil compreender a origem, o sentido e as consequências da pobreza.

Muitos convergem agora em enfatizar certos itens que, ainda que nem sempre tratados de forma consensual, revelam perspectivas que nos têm escapado escapar, pois estão para lá da simples apreensão do quotidiano.

Com efeito, estamos actualmente esmagados por culturas de entretenimento em que o mundo nos é revelado em flashes que produzem ilusão de conhecimento mas não nos mantêm rigorosamente informados sobre a paz social, o sentimento de felicidade, o acesso a bens de consumo ou os tempos e espaços de lazer.

Em particular, não é chamada a nossa atenção para a maior ou menor objectividade destes elementos nem para o papel do indivíduo como actor e destinatário da realidade.

É interessante notar que, no tratamento da pobreza, recorre-se indistintamente a análises feitas por pobres ou por cientistas sociais, a ponto de se poder perguntar quem são afinal os peritos: os pobres ou os cientistas sociais?

Um dos tópicos que têm sido examinados é o da capacitação, ou seja o que as pessoas são capazes de fazer para tomar o elevador social.

Dizer que existe pobreza quando se desce abaixo de um determinado patamar chega para formular um juízo de probabilidade mas não traz à superfície o significado profundo da pobreza e a sua identidade ontológica.

Emerge, daqui, a questão da liberdade que o pensamento marxista tratou exaustivamente mas que, et pour cause, outras ideologias não viram necessidade de privilegiar.

As percepções da pobreza são normalmente apresentadas utilizando padrões típicos da sociedade de bem-estar, especificamente focados no desenvolvimento económico, no fortalecimento interclassista e na mobilidade social.

A questão da liberdade é tida como outro domínio.

Na própria sedimentação dos direitos fundamentais, os direitos sociais, culturais e económicos são vistos como direitos de terceira e quarta geração para evidenciar a sua diferenciada inserção histórica.

E, no entanto, a pobreza é, antes de tudo, um estado de privação do gozo ou do exercício de liberdades como a

liberdade de conhecer,

a liberdade de escolher,

a liberdade de aceder.

Este ponto representa um aspecto crucial nos mal-entendidos que existem sobre a pobreza.

Quando se fala de liberdade como pressuposto existencial da democracia, utilizam-se geralmente conceitos importado de ideologias liberais, imbuídos da ideia de igualdade proclamada nas declarações revolucionárias mas sem delas tirar todas as consequências.

Não se nega a importância dos grupos sociais ou de factores identitários.

Mas a liberdade é um atributo do indivíduo e só existe quando ele está em condições de conhecer a sua condição face ao ambiente social em que se integra e é capaz de escolher, o que significa dispor de opções e dominar o sentido das escolhas.

Estas considerações permitem-nos desmistificar certas aquisições empíricas sobre as expectativas e o sentimento de felicidade dos pobres.

As correntes utilitaristas conferem demasiada importância às limitadas percepções dos pobres sobre o futuro e à sua não manifestação de um sentimento de infelicidade, comum noutros estratos sociais.

Em entrevistas realizadas em países em estado de pobreza endémica, sobretudo feitas a mulheres, a reacção das entrevistadas mostrou que desconheciam a noção de felicidade e, quando explicada a pergunta, diziam que estava tudo bem, pois o marido e os filhos estavam contentes com o seu trabalho.[2]

Podemos então afirmar que a privação de capacidades mínimas de avaliação mascara os sinais e o conteúdo da pobreza.

A falta de capacitação impede o encerramento do “ciclo de pobreza” e, quando, pelo acaso, ele acontece, torna provável a regressão ao estado anterior.

A liberdade existiria se, apesar de termos pessoas economicamente débeis, fossem capazes de ter uma vida saudável, participar na vida comunitária, aceder à educação e ao ensino ou obter emprego em condições de igualdade.

Mas não é assim.

A pobreza retira-lhes toda a autonomia individual e mesmo a percepção da sua dignidade essencial.

Alguns autores têm elaborado critérios para avaliar da existência desta percepção.

Como mais relevantes, apontam os afectos e o sentimento de aceitação como pessoa (relações pessoais), os direitos (respeito cognitivo) e a solidariedade (respeito social).

Só estas três formas de reconhecimento poderiam desenvolver uma atitude positiva a respeito deles próprios (com a obtenção de segurança e auto-estima).[3]

O reconhecimento de que falo não é necessariamente o de Fukuyama, baseado na natureza do homem e na ideia de processo histórico.[4]

A pobreza limita a construção da racionalidade, torna categórico o impulso de sobrevivência, anula as expectativas e constrange qualquer iniciativa individual.

Também o apelo à noção evangélica da pobreza de espírito é, algumas vezes, uma forma de relativizar a questão e de encontrar formas de imputação subjectiva que permitam, sem remorso, explicar a pauperização.

Diz-se que há casos de pobreza voluntária e que estes são positivos e devem estar fora do controlo social.

A imagem de Francisco de Assis emerge, neste plano, como um modelo de irmandade cósmica que parte do princípio de que todas as criaturas são pobres na medida em que são horizontalmente interdependentes e verticalmente dependentes de Deus.

Mas a pobreza, em Francisco de Assis, é um estado de liberdade interior.

É uma pobreza que teve liberdade de conhecer, de escolher e de aceder.

Em certo sentido, é uma pobreza ontológica.

Por outro lado a democracia liberal, juntamente com a liberdade, elege como atributo existencial a segurança.

Com a liberdade, a segurança seria um pressuposto da existência de uma sociedade ordenada.

Mas também aqui há lugar para a perplexidade.

A segurança compreende a ordem pública mas igualmente a capacidade de resolução de conflitos, de defesa de ataques exteriores, de protecção relativamente ao meio ambiente e de reivindicação da privacidade.

Acontece que o Estado não pondera estes elementos, desde logo porque não vai geralmente até às periferias das cidades onde habitam os que não têm voz para exprimir a desigualdade.

A liberdade e a segurança dos pobres não correspondem, assim, à liberdade e a segurança de que fala o pensamento liberal.

Quando as ideias de desenvolvimento e progresso prometem o alargamento gradual da protecção em favor de uma sociedade mais inclusiva, estão a reconhecer que a liberdade e a segurança só formalmente se apresentam, na actualidade, como direitos universais e que as condições da democracia liberal continuam por realizar.

Ora, não é possível manter o problema da pobreza num ethos, numa forma de ser, que obedece a uma certa neutralidade política e ideológica se quisermos desafiar o futuro.

Por outro lado, as análises parcelares dão-nos apenas um ângulo de observação.

Por exemplo, a sociologia da pobreza contempla o lado assistencial e tende, muitas vezes, para a crítica ao Estado?Providência e para estigmatização dos não activos, nomeadamente os desempregados.

Refugia-se na questão das desigualdades para assegurar mais facilmente a utilização do método estatístico que lhe é cara.

De resto, a sociologia crítica evita utilizar o conceito de “pobre”, pois presta, sobretudo, atenção ao lugar de cada indivíduo nas relações de produção.

A “cultura da pobreza” teorizada especialmente pelo antropólogo americano Oscar Lewis fala de um “ciclo de pobreza” em que os pobres desenvolveriam um sistema de valores que lhes permite fazer face à miséria mas os mantém na sua condição.

A ideia de “cultura da pobreza” contém sugestões interessantes quando descreve a pobreza como um sentimento de marginalidade, de dependência, de se se sentir estrangeiro no seu próprio país e em relação às instituições, de não possuir qualquer sentimento de pertença.[5]

Nenhuma destas perspectivas deve ser ignorada ou absolutizada.

Aqui, como noutras matérias, a perspectiva transdisciplinar, permitindo a aproximação a outras teorias, é o mais operativo instrumento de validação de cada postulado.

Os desafios que hoje se colocam não são olhar a pobreza de fora.

São observá-la por dentro como realidade social e ontológica.

Sei que esta perspectiva nem sempre faz parte do quotidiano de um professor de direito, como eu, tomado pela lógica normativa (o dever ser), frequentemente mergulhado em números e conceitos mais orientados para a macro-economia que para a micro-análise e para a subjectividade.

Em todo o caso, a experiência mostrou-me que é preciso parar para enfrentar a realidade, tão bombardeados estamos a ser com expressões que adquiriram estatuto de verdade científica.

Vejamos a noção de produto nacional bruto.

Está na base das políticas, da econometria, das avaliações sociológicas, do pensamento humanista, de toda a semiótica de desenvolvimento e progresso.

Lembremos, no entanto, o famoso discurso de Robert Kennedy, em 1968, sobre a avaliação da felicidade.

Cito:

“O nosso Produto Nacional Bruto considera nos seus cálculos a poluição do ar, a publicidade ao tabaco e as ambulâncias (…) regista o custo dos sistemas de segurança que instalamos para proteger as nossas casas e as prisões em que fechamos os que conseguem roubá-las. Ele leva em consideração a destruição das nossas florestas de sequóias e a sua substituição por uma urbanização descontrolada e caótica. (…) Ele regista programas de televisão que glorificam a violência para vender brinquedos a crianças.

Por outro lado, o Produto Nacional Bruto não observa a saúde dos nossos filhos, a qualidade da nossa educação ou a alegria dos nossos jogos.

Não mede a beleza da nossa poesia e a solidez dos nossos casamentos.

Não se preocupa em avaliar a qualidade dos nossos debates políticos e a integridade dos nossos representantes.

Não considera a nossa coragem, sabedoria e cultura.

Nada diz sobre a nossa compaixão e dedicação ao nosso país.

Em resumo, o Produto Nacional Bruto mede tudo, menos o que faz a vida valer a pena.[6]”

Mas Robert Kennedy foi assassinado.

E os cientistas sociais continuam a acreditar no Produto Nacional Bruto.

Vem depois a verdade estatística.

Uma verdade que não resiste à caricatura de que, numa comunidade em que metade das pessoas consome dois frangos por semana e a outra metade nenhum, conclui que o consumo por semana corresponde a um frango por pessoa.

Aqui pergunto se podem as religiões ajudar-nos a sair do labirinto?

Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco reconheceu os saltos qualitativos verificados no progresso científico e nas inovações tecnológicas mas também que a maior parte dos homens e das mulheres do nosso tempo vive o seu dia-a-dia precariamente, numa economia de exclusão e de desigualdade social.

E não poupou as palavras.

“Esta economia mata!” – disse o Papa.

E acrescentou:

“grandes massas da população vêm-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída.

O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.

Assim teve início a cultura do “descartável” que, aliás, chega a ser promovida.

Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas “resíduos”, “sobras”.”

Francisco explica que a pobreza não é uma categoria que deva apenas incluir-se nos conceitos políticos de desenvolvimento e progresso que têm como meta encaminhar as comunidades para sociedades de bem-estar.

Ela está abaixo de qualquer patamar de desenvolvimento e é, sem ajuda exterior, incapaz de explorar conceitos e de definir projectos de ascensão social.

Como referi, esta realidade conflitua com noções adquiridas e muito caras à democracia liberal, pois significa que os direitos à liberdade e à segurança, tidos como prioritários e suficientes para realizar a ideia de democracia, afinal não o são, pelo simples facto de deixarem de fora franjas consideráveis de pobreza.

A cidadania encontra-se, pelas mesmas razões, vedada aos pobres.

Não quer isto dizer que a sociedade tranquila não olhe episodicamente para os mais desfavorecidos para aliviar a consciência.

Em qualquer caso, quando o faz, não são os pobres a tomar a seu cuidado a participação, o acesso ao conhecimento, a luta pela igualdade e as transformações sociais.

Por outras palavras, as sociedades são inclusivas apenas quando os poderosos permitem um maior ou menor nível de participação dos pobres.

Não porque estes estejam capacitados para exigir e promover a inclusão.

Quando são inclusivas, são-no de cima para baixo.

Aproximo-me do fim. Como procurei demonstrar, a pobreza não é apenas um patamar em que se encontram pessoas à espera de vez para ingressarem na sociedade de bem-estar.

É uma condição de privação que, afectando a liberdade, a segurança, a cidadania e a identidade, tende para manter os pobres no lugar em que se encontram.

Mas com tantas teorias científicas, instrumentos de diagnóstico e terapias sociais, porque é que a pobreza progride, pergunta-mos.

É fácil reconhecermos que existe hoje uma maior consciência dos efeitos da pobreza na ordem social.

E que a maioria dos estratos sociais quer, genuinamente, resolver o problema.

A simples coabitação nos espaços comuns de pessoas economicamente providas e de gente sem eira nem beira gera violência, desordena esteticamente as cidades e fere o olhar dos mais sensíveis.

Também sabemos que, contrariamente ao que diz a ortodoxia orçamental, há disponibilidades.

As sociedades de consumo são cada vez mais sociedades de desperdício.

Como fazer, então? A luta contra a pobreza deveria, por múltiplas razões, centrar-se na reconstrução do pensamento que domina cada uma das disciplinas que invocámos.

Acontece que a pós-modernidade está dominada por culturas e estilos de vida hostis.

Vivemos uma modernidade líquida, como alguns referem.[7]

É um tempo de fluidez, volatilidade e incerteza em que nada está pensado para durar.

A modernidade líquida é a época em que os referenciais, que possibilitavam o desenraizamento e o reenraizamento do velho no novo, se liquefizeram e, por consequência, se perderam.

A nacionalidade, a ideologia, a religião ou os códigos sociais deram lugar a subculturas e contraculturas que se caracterizam pelo transitório, pela monetarização de valores e por um hedonismo inconsistente.

A compromissofobia é igualmente uma imagem de marca da actualidade.

O declínio do dever está a ser potenciado pela fuga ao compromisso que leva à rebeldia, à não vinculação, à dessolidarização, à fuga ao institucionalismo e à valorização do instantâneo.

As leituras que têm sido feitas em relação a determinadas instituições ou práticas sociais exploram outros terrenos quando as explicações mais plausíveis pareceriam poder encontrar-se na fuga ao compromisso.

Este tempo é, também, de pensamentos avulsos.

A noção de relação está a ser substituída pela de conexão, o que, pela cultura digital, conduz a uma multiplicidade desordenada de referências e à saturação do conhecimento.

Sendo assim, atrevo-me a pensar que o objectivo de reconstruir o pensamento deveria retomar o fio das explicações fornecidas pelas diversas ciências e utilizar discursos inteligíveis para as novas formas de comunicação.

O ideal democrático tem de enfrentar o problema da pobreza com carácter de urgência.

E também a Europa terá de o enfrentar sob pena de se negar a si própria.

É hoje o dia para o fazer.

[1] Cfr. La lute contre la pauvreté, disponível em http://www.eueoparl.europa.eu/atyourservice/fr/displayFtu.html?ftuld=FTU_2.3.9.html (último acesso Maio de 2018).

[2] Cfr. Sen, Gender and cooperative conflicts, 1990, p. 126 cit. in The philosophical evaluation of poverty, Universität Salzburg, nº 3, Janeiro de 2013, p.13.

[3] Cfr. Honneth, A., The struggle for recognition: the moral grammar of social conflits, Cambridge, 1996, p. 169.

[4] Cfr. Francis Fukuyama, O fim da história e o último homem, Lisboa, Gradiova, 1992.

[5] Cfr. Jeanne Lazarus, Pauvreté, Concepts et mesures de la pauvreté, disponível em http://ceriscope.sciences-po.fr/pauvrete/content/part1/les-enjeux-de-la-sociologie-de-la-pauvrete (último acesso em Maio de 2018).

[6] Extraído de Jean-Claude Michéa, L’empire du moindre mal, Essai sur la civilisation libérale, Castelnau-le-Lez, Climats, 2007, p. 117.

[7] Para utilizar a expressão de Zygmunt Baum.

Junho 28, 2018
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