Sempre que ouço falar numa qualquer actividade que promova a intergeracionalidade ou o envelhecimento activo, confesso que me inquieto. Como se algo sob a minha pele se sobressaltasse, mas para dentro, como num arrepio invertido, uma pele de galinha introvertida.
E observo-me daqui a quarenta anos, sentado num dos sofás do “Centro Diário SéniorMultitasking”, no meu sossego de leitura de jornal (ou de “qualquer coisoPad”), alguém aproximar-se, dizendo-me: «Sr. Ilídio, hoje vem cá um grupo de jovens promover uma actividade intergeracional com os utentes do lar. Vêm fazer um atelier de danças europeias convosco – não quer participar?». E continuo imaginando-me, incomodado, como se eu fosse uma espécie de idoso extraterrestre qualquer, um ser laboratorial onde experiências dançantes serão aplicadas sobre mim por seres com menos rugas e confiantes de me estarem a proporcionar um bem inestimável. E eu com uma vontade igualmente inestimável de mandar passear a simpática animadora social e de me pôr a andar dali para fora.
E quando regresso ao presente volto a questionar-me se não estaremos a forçar demasiado a ligação entre os mais novos e os mais velhos. Se essa empatia não deveria ser natural e espontânea, surgida das nossas rotineiras interacções sociais. Claro que sim, eu me respondo. Essa seria a utopia. Mas se não começarmos por qualquer lado, nada surgirá… Porém, continuo a interrogar-me se não continuamos a tentar mascarar uma distância efectiva, a polvilhar base sobre uma ferida sangrenta.
Quando vejo um velho a quem alguém decidiu colocar uma criança à sua frente, como quem atira um joguete a um cachorro, tenho, frequentemente, a sensação de estarmos a proceder erradamente, a romper dignidade. Embora nessa interacção persista ocasionalmente um sorriso rugoso, não constato felicidade plena naquele olhar, parece-me falso, plástico. E tão-pouco me soa a saudade dos dias de jovialidade, ou ao reviver dos filhos e netos que já se foram ou vagueiam por aí. Soa-me, sim, a extracção de independência, a sucção de autonomia, a manipulação de afectos. Como se aqueles seres fossem nossa propriedade, como se nós percebêssemos a complexidade e os desejos daquelas consciências, como se receitássemos electrochoques para doenças mentais e, atrás do vidro da sala fria, apontássemos coisas científicas no nosso bloco de apontamentos, nas folhas brancas, como as batas de saberes vestidos.
Enfiam-me um fato de D. Afonso Henriques, uma coroa metálica de fingir, como de fingir parece o respeito que me têm. Todos os anos, antes de cada Carnaval, perguntam-me se me quero mascarar: «Não é obrigado a fazê-lo, Sr. Ilídio. Cada um, neste lar, faz aquilo que bem lhe apetecer». E eu, uma vez mais, não tenho a coragem de censurar o olhar censurador e mal disfarçado dos meus colegas activados e dos funcionários que me cuidam dia após dia. Pareço um infantil boneco no desfile, ao lado de crianças que parecem adultas, que desfilam dignidade.
No refeitório que cheira a peixe cozido e aos medicamentos dissolvidos em águas tremelicantes, pode ler-se nas letras para portadores de cataratas, um cartaz: «Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre Gerações». Ainda andam de volta disto; quarenta anos depois e ainda não viraram o disco…
É que, desde então, aquilo que se designava por «União Europeia», não mais orientou qualquer outro caminho. Nunca nos questionámos acerca da validade das práticas, se o objectivo inicial estaria a ser cumprido, se o que havia sido delineado fazia realmente sentido. Não nos apeteceu pensar até onde devíamos ter ido nem quando seria oportuno colocar-lhe um ponto final, uma vírgula, quanto muito. Alguém, supostamente, o teria feito num escritório qualquer, numa igual língua estrangeira.
Deste modo, continuavam a empanturrar-me de actividades de envelhecimento activo enquanto me limpam os cantos da boca com um guardanapo de papel azul desbotado. Como querem tornar a minha actividade cerebral – de cor desvanecida. E sinto em pleno o diálogo intergeracional quando aquela escassez de tempo personalizada me assegura que «os velhos são fontes de saber, são rios de ternura, Sr. Ilídio». E eu engulo com mais dificuldade os lombinhos de peixe, que procuro não imaginar como ideias saídas daquela geração comunicante.
Apanho uma boleia da viagem mental no tempo, vou até ao Senado da Roma antiga. As espinhas sabem-me a uvas de bordel. Recuo um pouco mais para me deliciar com os sábios Gregos. De cérebro ainda ruminante regresso aos Senex, anciãos que constituíam o Senatus, plenário de actividades activas excluído de jovens passivos. Subo o patamar da primeira década do século vinte e um para constatar que somente dez por cento do plenário da altura se compunha por cidadãos com mais de sessenta anos ? o envelhecimento activo na sua plenitude, a eterna confiança intergeracional dos mais novos nas suas «fontes de saber».
Enquanto sinto a colher mal polida magoar-me a cara molhada de comida demasiado quente ? qualquer sobremesa de cheiro a laranja de estufa ?, saúdam-me saudades da televisão de antigamente: sem letras de rodapés e informações que não deixam espaço à imagem, sem cliques de internet de valor acrescentado, sem me confirmar a existência de uma sociedade envelhecida onde os velhos, perdão, “idosos”, continuam a ser uma geração invisível a vistas de estufa.
E leio, com dificuldades de rodapé, as estatísticas que continuam a engrossar os números da solidariedade geracional. Exponenciais. Orgulhosas. Tantas actividades, e dinamismos, e originalidades, que se chegam a assemelhar à minha coroa de Henriques, ao Afonso que eu pensava ser de fingir até me intercomunicarem o contrário. Ainda bem que assim foi, porque a certo ponto, enquanto a laranja pingava químicos pelo meu queixo, julguei tratar-se exclusivamente de uma moda, de actividades secundárias para entreter a geração terciária e destinada a alimentar vícios primários de uma geração semelhante.
Felizmente estava enganado – não fossem tais orientações e pontes intergeracionais construídas na geometria solidária correcta e, muito provavelmente seria eu, em pleno 2054, direccionado ad pontem, num revivalismo dos novos costumes romanos.
Nada disso. Era a pele de galinha arrebitada para fora, armada em revolucionária e a querer fazer jus ao título deste texto. Antiquadas modernices.