O Rendimento Social de Inserção faz parte da composição de garantias dos sistemas modernos de proteção social e a sua existência é o comprovativo da maturidade e razão maior desses sistemas. No entanto a sua aplicação não é, e nunca foi consensual. Assistimos regularmente a discussões, debates e opiniões em que se demonstra a não unanimidade da sua aplicação.
Ao promover o seminário: “Rendimento Social de Inserção: uma garantia de cidadania?” A EAPN Portugal pretendeu levar à discussão pública e de profissionais, esta temática e ajudar a clarificar algumas posições menos informadas sobre o discurso da “lógica da subsidiodependência”, sem o necessário contraponto sobre o papel da motivação, da ativação e das garantias de condições mínimas para uma vida digna.
As polémicas relativas à aplicabilidade da medida não são recentes, bem pelo contrário, elas são mesmo anteriores à atual crise económica e social, esta por sua vez só agravou as questões relativas à operacionalização, condicionalidades e contrapartidas. Assiste-se pois, a uma questão que marca o devir da proteção social e da atenção aos mais vulneráveis. A crise tornou assim mais difícil o caminho da medida nos quadros desta mesma proteção social e enquanto instrumento de garantia de cidadania.
A degradação da imagem pública da medida motivou a realização deste evento, como um espaço de reflexão que contribuísse para um debate sério, que esclarecesse preconceitos e a restabeleça como medida que, ao lado de outras, se alinhe pelas garantias dos direitos sociais, logo, dos direitos humanos.
Em Portugal o desenvolvimento da medida encontra-se em linha com as tendências verificadas noutros países:
- Reforço da obrigação para disponibilidade para o trabalho, ou seja o reforço do caráter coercivo em tempos de pouco trabalho, acentuando-se a vinculação a um mercado de trabalho secundário, precarizado e desvalorizado. Nesta conjuntura é legítimo perguntar: “como fica o caminho para a inserção?”. As anunciadas apostas na melhoria da medida traduzem-se no reforço da personalização dos serviços de emprego e na subcontratação da sua implementação.
- Estreitamento do acesso e das componentes da medida (por exemplo dos designados apoios complementares que frequentemente responderiam a dimensões básicas de vida).
- A crise das dívidas públicas está a originar uma outra geração de políticas (com reforço do caráter punitivo). Os condicionalismos de acesso, os critérios de atribuição, ao tornarem-se mais burocráticos e mais exigentes, têm como resultado mais imediato a retirada de milhares de potenciais beneficiários, ficando apenas aqueles que vivem em absoluta situação de pobreza.
- Alguns dos instrumentos afetos à medida (caso por exemplo das designadas atividades socialmente úteis) permanecem subavaliadas, isto é, continua a saber-se pouco para apreciar a sua efetividade. Por outro lado, sabe-se que a medida consegue apenas uma pequena percentagem de sucesso no que respeita à inserção no mercado laboral, sendo contudo difícil de estabelecer uma relação direta entre a “passagem” pela medida e a (re)inserção profissional. Os dados indicam-nos que o RSI dificilmente inverte as lógicas de inserção laboral, na maioria dos casos são os beneficiários com mais aptidões sociais, recursos e habilitações académicas que mais rapidamente conseguem essa inserção.
- As consequências das alterações que vêm sendo introduzidas designadamente quanto à definição da unidade familiar e ao uso de escalas de equivalência, têm tido repercussões no aumento efetivo da intensidade da pobreza, na redução do número de beneficiários, no valor médio da prestação por pessoa, no aumento das taxas de pobreza infantil e na penalização de famílias com crianças.
- A alteração dos critérios teve igualmente como consequência a diminuição do efeito de combate à pobreza, ainda mais notória no que respeita à pobreza mais severa.
- O esforço de redução da dívida pública e os consequentes cortes nos apoios sociais (incluindo o RSI) tem gerado uma evidente atenuação do potencial de combate às desigualdades criando, por outro lado, um efeito perverso, acentuando o problema e estigmatizando os beneficiários ao mesmo tempo que a neutraliza.
Ao nível europeu, dificilmente se pode falar de uma estratégia europeia ou sequer de um plano consistente de luta contra a pobreza. Assiste-se antes a um conjunto de iniciativas com défice de articulação entre si. A este nível a EAPN tem trabalhado em propostas concretas quer através das redes nacionais, quer a nível europeu, nomeadamente através dos Encontros Europeus de Pessoas em Situação de Pobreza, que têm permitido um conhecimento de proximidade dos problemas experienciados e sobretudo têm permitido recolher propostas de melhoria das medidas e políticas existentes.
A União Europeia vive hoje uma intervenção social desequilibrada, tendo como reflexo mais direto desta situação a sua fraca influência exercida sobre os países membros, quando deveria servir como exemplo de articulação política. Neste sentido, a sua influência – sendo forte e articulada – poderia propiciar uma efetiva conexão com o mundo do trabalho e o desenvolvimento de ideias – chave: tais como o rendimento adequado, trabalho decente e viver uma vida com dignidade, no fundo os princípios da Estratégia Europeia da Inclusão Ativa.
O RSI enquanto prestação pecuniária, significa também um potencial de base de uma recuperação económica e inclusivamente da crise, para além do seu potencial de inclusão social. A EAPN Portugal defende que quanto mais suficientes forem esses benefícios, mais poderão favorecer a autonomia e independência dos cidadãos abrangidos, logo também das respetivas sociedades.
Relativamente ao valor pecuniário do RSI, a EAPN defende que o seu valor deverá estar indexado ao que poderemos chamar “rendimento adequado”, ou seja, tendo como base a pergunta: “ Qual o valor do rendimento que deve dispor uma família para poder viver dignamente em Portugal?”. No atual contexto português em que o orçamento/salário de referência continua ancorado em cálculos feitos em 1969, a questão deste rendimento adequado deveria ter em conta estudos que se ocupam hoje da análise do que poderia ser um padrão de rendimento mínimo de referência para a Europa. Adequação: de que se trata? O que é que efetivamente se visa proteger? Como se determina a linha de pobreza? São perguntas simples mas que nos fazem retomar/rever alguns dos adquiridos quanto ao entendimento sobre necessidades/direitos (que não são nem desejos, nem preferências) mas antes garantia de vida (mais do que sobrevivência) e de participação social.
Sendo o valor do RSI muito abaixo do limiar da pobreza e sendo este um “contrato” com cidadãos a quem são pedidas contrapartidas, estas não podem passar por providenciar apenas inserção em trabalhos precários e mal pagos, que por sua vez criam um mercado paralelo e precarizam a vida dos cidadãos e estigmatizam as medidas. É indispensável a responsabilidade pública e as exigências que devem ser mantidas na subcontratação de ações designadamente quando está em causa a manutenção de condições básicas de vida. Neste sentido a EAPN realça o papel da necessidade de articulação das políticas de emprego (entre si e com as outras medidas).
No decorrer deste seminário ficou demonstrado que as experiências apresentadas permitiram elencar um conjunto de aspetos a levar em conta para a apreciação de um esquema de Rendimento Mínimo, a saber: os princípios, o patamar de adequação, nível de consensualização das medidas, recursos necessários e suficientes, administração competente. Em matéria de princípios salientou-se a simplicidade, transparência e justiça e não apenas o cuidar do ajustamento da medida. A EAPN defende igualmente a necessidade de políticas integradas; um esquema básico aberto à diversidade de públicos e problemas; a atenção a ações para crianças (e não só famílias); a superação do critério da condição de recurso e a facilitação ao acesso (incluindo geograficamente), tendo em conta situações como os designados “novos pobres”.
Relativamente ao papel dos profissionais que intervêm na concretização desta medida, sendo a “linha da frente”, conhecem o sofrimento na primeira pessoa e percorrem caminhos profissionais de confronto diário com quotidianos que apelam à superação do sofrimento. Têm na mão instrumentos de difícil operacionalização como é o caso da discricionariedade em contexto de um muito acentuado controlo administrativo. Muitos dos profissionais que trabalham na medida vivem também situações de grande precarização de condições laborais, logo também de difíceis equilíbrios de vida. Sabem como ninguém a distância entre o legislado e as práticas e, nesta matéria, o RSI pode ser considerado como a ponta do iceberg da solidez de todo o sistema de proteção social. Diz-se que a consistência de uma cadeia se avalia a partir do elo mais fraco. Também a nível profissional se justificará, hoje, uma ação maior que o espaço nacional, dada a mobilidade das ideias e práticas que contagiam para melhor ou pior ou mesmo para deixar tudo como dantes.
Terminamos com a oportuna Exortação Apostólica do Papa Francisco, dada à estampa no dia 24 de Novembro, que nos parece adequada à atual situação (A Alegria do Evangelho). Citando:
“Hoje, em muitos contextos, reclama-se maior segurança, mas até à reversão da exclusão e da iniquidade dentro de uma sociedade e entre os distintos povos, será impossível erradicar a violência. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona para a periferia uma parte de si mesma não haverá políticas nem recursos policiais que possam assegurar indefinidamente a tranquilidade/segurança. Isto não sucede somente porque a iniquidade provoca a reação violenta dos excluídos do sistema, mas sobretudo sucede porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz.
(…) Alguns simplesmente se ocupam a culpar os pobres e países pobres dos seus próprios males com generalizações indevidas e que pretendem encontrar a solução numa “educação” que acalme esses povos e os converta em seres domesticados e inofensivos.
Esta exortação reflexiva estimula a reflexão e os argumentos ético-cívico e profissional em torno dos sistemas de Rendimento e Inserção adequados para todos.